O Brasil que deu certo

Faz parte da indignação e de raiva nos perguntarmos como chegamos a isso seguida, a indagação, da afirmação de que o Brasil não deu certo. Mas a dúvida é retórica, para não dizer ingênua, e a assertiva, equivocada

Quase uma semana depois do assassinato brutal de Genivaldo de Jesus Santos por agentes da Polícia Rodoviária Federal de Sergipe, Bolsonaro finalmente se manifestou. Sem condenar explicitamente a execução de Genivaldo Santos, se limitou a dizer que a “PRF faz um trabalho excepcional para todos nós”, e que a justiça decidirá sobre o caso, “sem exageros e sem pressão por parte da mídia que sempre tem lado, o lado da bandidagem”.

Todo mundo sabe o que ele quis dizer com o aparente lapso verbal.

Genivaldo, um homem negro de 38 anos que sofria de esquizofrenia, foi abordado aos gritos por policiais rodoviários, arrastado, jogado e trancado na viatura, transformada em uma câmara de gás depois que um dos policiais jogou uma bomba de gás lacrimogêneo no compartimento traseiro, enquanto o segundo apertava a tampa da mala.

Ao sobrinho que pediu que não machucassem seu tio, um policial respondeu que “ele está melhor do que a gente aí dentro”. Genivaldo morreu asfixiado em uma ação que a PRF, inicialmente, justificou, alegando que seus agentes usaram “técnica de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo” para conter sua “agressividade”.

O “crime” de Genivaldo foi andar de moto sem capacete. Exatamente o que Bolsonaro fez meia dúzia de vezes nas exibições fascistas eufemisticamente chamadas de “motociatas” – inclusive, em uma delas, carregando na garupa, também sorridente e sem capacete, o empresário Luciano Hang.

Em sua fala, o presidente repetiu um gesto comum entre seus seguidores. Nas redes bolsonaristas, não basta comemorar a violência policial. É preciso transformar a vítima em criminoso e matá-la uma segunda vez, assassinando sua memória. Adulto ou criança, rapidamente mentiras circularão freneticamente nos grupos bolsonaristas, incluindo fotos falsas e montagens grosseiras que a associam às facções criminosas e ao tráfico de drogas.

Ao chamar Genivaldo de “bandido”, Bolsonaro se adiantou aos seguidores, em uma tentativa, provavelmente, de associar sua morte à chacina em Vila Cruzeiro, um dia antes, quando uma operação da chamada tropa de elite da polícia carioca, com participação da Polícia Rodoviária Federal, fez 26 vítimas.

No “confronto”, jargão oficial utilizado pelas tropas militares e o governo, morreram Ricardo José Cruz, 26 anos, mototaxista, o ex-militar Douglas Inácio Donato, de 23 anos, o estudante João Carlos Arruda, de apenas 16 anos, e a cabeleireira Gabrielle Ferreira da Cunha, 41. Nenhum deles tinha passagem pela polícia. Mas eram pobres e negros e logo, pela lógica de Bolsonaro e seus cúmplices, bandidos.

Nenhum dos mortos pertencia ao BOPE ou a PRF.

Em discurso a seguidores após as imagens do crime contra Genivaldo, Bolsonaro, preferiu dizer que a “PRF faz um trabalho excepcional para todos nós”. Foto: reprodução.

Um projeto de país

Faz parte da indignação e da raiva que sentimos em episódios como esse, nos perguntarmos como chegamos a isso seguida, a indagação, da afirmação de que o Brasil não deu certo. Mas a dúvida é retórica, para não dizer ingênua, e a assertiva, equivocada.

Chegamos até aqui porque somos um país fundado sobre as bases de um genocídio, o indígena, e de um comércio de corpos negros escravizados; um Estado construído e consolidado a golpes militares; uma sociedade patriarcal e machista que violenta suas mulheres e assassina sua comunidade LGBT; uma elite predatória que não titubeia em abraçar a barbárie em nome do lucro, condenando a maioria à miséria; uma nação que optou pela conciliação com seus passados autoritários, inclusive e principalmente, sua ditadura mais recente.

Acertadamente, Lula condenou a chacina no Rio de Janeiro. Mas os governos petistas deram prosseguimento a uma política de segurança baseada no enfrentamento e na guerra. Foram nas gestões progressistas que nossa população carcerária aumentou exponencialmente e foram implementadas medidas que aumentaram significativamente o poder de polícia do Estado.

Havia diferenças nada desprezíveis ao nosso atual estado de coisas, é verdade. A violência policial gerava desconforto, inclusive em membros do governo, porque respirávamos um ambiente em que esse tipo de coisa ao menos causava escândalo.

O que há de terrível no bolsonarismo, entre outras tantas coisas, é que ele naturalizou a barbárie, transformando-a não mais em exceção, mas norma.

Policiais torturam e matam um inocente e invadem uma comunidade periférica, deixando um rastro de destruição e morte, tudo a céu aberto. E o presidente usa suas redes sociais para parabenizá-los pelas 26 mortes e em uma declaração pública chama a vítima da câmara de gás improvisada de “bandido”.

E enquanto alguns de nós nos indignamos, sua base de apoio comemora. Porque cada novo cadáver é a confirmação de que o Brasil, deu certo. O Brasil da escravidão e do racismo, do genocídio das comunidades indígenas e do povo negro, do feminicídio e da homofobia, da devastação ecológica, do entreguismo, do autoritarismo, do terror de Estado, da conciliação e do esquecimento.

Não nos enganemos: Bolsonaro e o bolsonarismo têm um projeto de país. E não é preciso esforço para sabermos qual é e o quanto ele ainda nos custará.

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