Telefone sem fio

Existem vários distúrbios de linguagem, mas no mundo do AVC, a afasia e a disartria se destacam

Comunicar-se é uma arte, enquanto não se comunicar é a solidificação de um muro entre as pessoas. Dizem que as sequelas de um AVC são o principal motivo para as dificuldades no diálogo. Discordo, acho que o motivo desses ruídos vai além disso.

TU. TU. TUUUU… Ninguém gosta de esperar, todo mundo sempre tem pressa. Faz parte do nosso dia corrido. Nisso a gente se acostuma a falar sem ouvir, e se esquece que a comunicação se dá entre duas vias: você e o outro. Pois é, não deixar alguém falar por ter pressa é, no mínimo, desrespeitoso. Infelizmente, esse tipo de situação é vivenciado todos os dias por quem tem um distúrbio de linguagem pós- AVC.

Existem vários distúrbios de linguagem, mas no mundo do AVC, a afasia e a disartria se destacam. A primeira é caracterizada pela perda da capacidade de falar, escrever ou compreender o que está sendo dito, enquanto a segunda atinge a articulação da fala, especificamente nos fonemas. Essas duas sequelas geralmente são oriundas de lesões no lado esquerdo do cérebro, e o profissional responsável pelo tratamento de ambas é o fonoaudiólogo. Só que os exercícios da reabilitação precisam ser estendidos no dia a dia do paciente, e não somente restritos às horas destinadas às sessões. É exatamente neste ponto que o sobrevivente encontrará o seu maior desafio, já que ele terá poucas oportunidades de expressar sua fala, devido à falta de paciência do interlocutor.

TU. TU. TUUUU… PIP. PIP. PIP. Apesar de todos nós aprendermos na escola que a linguagem vai muito além da fala e da escrita, a tendência é nos esquecermos disso no dia a dia da vida. Porém, todos esses outros modos de comunicação estão presentes nas pessoas com afasia e disartria. Para se fazerem entender, eles apontam, mostram figuras, desenham e soletram palavras-chave. Todo esse esforço é possível graças a um excelente cognitivo, muitas vezes não prejudicado por um AVC. Eles entendem o mundo; o mundo é que não os compreende. O mundo está muito limitado aos velhos padrões da fala e da escrita.

Conversar com alguém que tenha algum distúrbio de linguagem, sem dúvida, é diferente, mas não é tão complicado como parece. Tenho uma amiga de Minas que conversa comigo no celular com frases de efeito e prints de várias imagens. Todas as nossas conversas são compreensíveis para mim, porque eu levo em conta a personalidade dela, que vai muito além de sua afasia. Milla é animada, gosta de fofoca e de moda, e isso faz com que suas conversas sejam sempre contagiantes. E como uma boa tagarela (nós duas somos), a cada dia que passa, ela pronuncia melhor as palavras, enquanto eu aprimoro a minha cognição.

Nós, AVCistas, adoramos explorar outras formas de comunicação, como conversas por vídeos e envios de áudios. Esses canais são mais acessíveis e tranquilos perante nossas inúmeras sequelas. Pensando bem, muita gente se comunica assim pelos smartphones da vida, sem necessariamente estar lidando com algum distúrbio neurológico. A diferença entre nós e elas, é que ninguém as julga perante essa escolha, enquanto nós somos chamados de chatos e preguiçosos. Justamente nós, que utilizamos tais estratégias por uma necessidade.

TU. TU. TUUUU… SUA CHAMADA ESTÁ SENDO ENCAMINHADA PARA A CAIXA POSTAL. Outro desafio muito comum para pessoas com distúrbio de linguagem, e para todo sobrevivente de AVC em geral, é a descrença em sua intelectualidade. Para começar, as pessoas nem olham em nossos olhos quando se comunicam conosco, mas para quem nos acompanha. A impressão que dá é que perdemos a autonomia de decidir se queremos café ou chá, se estamos ou não com fome. Esse tipo de atitude faz com que nos sintamos alheios à nossa própria vida, coadjuvantes da nossa própria história.

Mesmo não tendo que lidar com um alto grau de afasia, vira e mexe lido com esse sentimento de marginalização. É perturbador. E já percebi que sou tratada assim a partir do instante em que descobrem que tive uma lesão cerebral. Este simples fato faz com que eu seja vista como incapacitada antes mesmo de trocarem uma palavra comigo. E digo mais: essa situação já aconteceu até com neurologistas. Teve um tempo que, para evitar ser tratada desse jeito, procurava ir às consultas sozinha. Afinal, sem ninguém por perto, eles só poderiam se dirigir a mim para falar sobre o meu estado de saúde, não é mesmo? Ledo engano, diante desta estratégia, os médicos se concentravam apenas nos exames e receitas, sem olharem para a minha cara. Levei um bom tempo para encontrar um neurologista que me respeitasse. Talvez tenha sido na terceira ou quarta tentativa.

O maior problema é que atitudes como essas acabam com a nossa autoestima. Quando somos tratados de forma inferiorizada por uma figura de autoridade, como um Doutor, por exemplo, podemos acreditar que realmente somos inferiores. Do mesmo modo que, quando somos tratados com desprezo e negligência pelos nossos amigos e familiares, vamos sentindo que talvez não mereçamos o contrário. O caminho da comunicação é uma via dupla, e quando apenas recebemos mensagens negativas, é preciso muito empoderamento para não acreditar nelas.

TU. TU. TUUUU… ALÔ? ALÔ! Como a sociedade nos fecha as portas, acabamos por treinar a nossa comunicação (e aliviar nossas angústias) entre nós, sobreviventes de AVC. Foi assim que descobri que não estava “errada”, “mimizenta” ou “doida”.  Foram nesses diálogos que conheci muita gente interessante, e fiquei feliz em saber que eu era uma delas. Foi aí que me surgiu uma questão; será que todo esse problema de comunicação é apenas com a gente ou ele também sofre influência pelo preconceito do outro?

Em uma sociedade em que a base da comunicação é pautada pela aparência, para se ter empatia, é preciso antes sobreviver à saída de uma intensa zona de conforto. Dialogar com uma pessoa com afasia e disartria significa testar novas maneiras de escutar e entender. Acreditar na inteligência de um AVCista significa crer nas inúmeras capacidades de um cérebro machucado. Considerar uma pessoa com deficiência atraente, é ir além de todos os padrões impostos por uma sociedade hipócrita, que vive com o propósito de esconder suas imperfeições, bem como suas limitações.

Lidar com a agressão comunicacional faz parte do cotidiano de todo sobrevivente de AVC, e isso nos limita muito mais do que a nossa deficiência adquirida. Somos marginalizados, hostilizados e ignorados o tempo todo, praticamente em todos os lugares. Este tipo de tratamento também nos torna vulneráveis perante as injustiças da vida. Não podemos denunciar algo porque não nos escutam, e quando escutam, não acreditam. Por isso é comum sofrermos vários tipos de violência, inclusive a hospitalar. Vários abusos podem ser encobertos por uma lesão cerebral. Eu sei, já passei por isso, e me surpreendi ao constatar que não fui a única.

Já que toda comunicação acontece entre um locutor e um interlocutor. Que tal se ao invés de exigir de um paciente em reabilitação neurológica uma FALA perfeita, o outro lado aprimorasse a sua ESCUTA?  Assim, o diálogo teria menos ruído, e o telefone sem fio tão recorrente em nossa vida seria apenas uma brincadeira. TUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU….

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