Mais uma vez, legado da escravidão nos dá um tapa na cara

Bolsonaro passou quatro anos minimizando as denúncias de trabalho análogo à escravidão e dificultando o trabalho de fiscalização.

A imagem do Sul não anda exatamente uma maravilha – exceto, talvez, para alguns sulistas.

No dia 22 de fevereiro, uma operação realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o Ministério Público do Trabalho (MPT), Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, resgatou 207 trabalhadores submetidos a condições degradantes e trabalho análogo à escravidão.

A Fênix, empresa de Bento Gonçalves e responsável pelo uso da mão de obra escravizada, prestava serviços terceirizados a três vinícolas de Caxias do Sul, a Salton e as cooperativas Aurora e Garibaldi. Ela trazia os trabalhadores da Bahia prometendo, entre outras coisas, salários de R$ 3.000,00, e os submetia a jornadas diárias de trabalho de até 15 horas, sem pausas nem folgas aos finais de semana.

O vínculo era mantido pelo endividamento crescente dos trabalhadores e pela aplicação contínua de multas e descontos salariais. Além da alimentação e dos alojamentos inadequados, os trabalhadores denunciaram práticas de tortura com armas de choque e spray de pimenta.

Não parou por aí.

No começo dessa semana, em Joinville (minha cidade natal, aliás) o Sindicato dos Servidores Públicos do município (SINSEJ) denunciou condições precárias de trabalho – o MPT ainda precisa confirmar se a situação se configura como análoga à escravidão – em uma obra da prefeitura, o Centro de Bem-Estar Animal (CBEA).

A empresa terceirizada, entre outras coisas, transportava os trabalhadores no baú fechado de um caminhão, lhes negava acesso ao refeitório, obrigando-os a almoçarem em um canil, e os submetia a condições precárias, insalubres e inseguras de trabalho.

Enquanto escrevo essa coluna, leio que indígenas trazidos de Mato Grosso do Sul para trabalhar em empresas agrícolas na colheita de maçã em Vacaria, também no Rio Grande do Sul, foram submetidos a tortura física, endividamentos forçados, jornadas extenuantes, alojamentos insalubres e comida estragada.

Quase tão espantoso quanto as denúncias foram as reações de lideranças pelo menos indiretamente envolvidos nelas.

Em Joinville, o jornalista Leandro Schmitz, responsável pela reportagem, foi demitido exatos cinco minutos depois de publicada a matéria no site do Folha Metropolitana, dizem que por pressão do prefeito Adriano Silva, do NOVO, o partido que é uma espécie de bolsonarismo de sapatênis. A presidente do SINSEJ foi ameaçada de morte.

O Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG) publicou nota onde, a repudiar as condições dos 207 trabalhadores escravizados, culpou políticas públicas como o Bolsa Família pela prática da escravidão de suas associadas.

A cereja do bolo: em Caxias do Sul, o vereador bolsonarista Sandro Fantinel subiu à tribuna para ofender os baianos e responsabilizar os trabalhadores pela condição em que foram resgatados. “Não contratem aquela gente lá de cima”, aconselhou aos empresários da região, sugerindo contratar argentinos, limpos e corretos. Com “aquela gente lá de cima (…) que a única cultura que têm é viver na praia tocando tambor, era normal que fosse ter esse tipo de problema”.

Expulso do seu partido, o Patriota, e correndo o risco de cassação, Fantinel fez o que todo bom bolsonarista costuma fazer: de acordo com ele, sua fala foi em um “momento de impulso”, e que o momento está sendo usado para prejudicá-lo vocês sabem por quem. Isso mesmo, pela esquerda.

Passado que não passa

A escravidão é um dos alicerces sobre os quais o Brasil foi fundado. Diferente do que afirmam negacionistas e revisionistas, ela não foi um “desvio moral”, um momento da nossa história que é preciso “deixar para trás” e esquecer.

Antes pelo contrário, o trabalho de escravizados – indígenas, inicialmente, africanos depois e ao longo de mais de três séculos – é um elemento estruturante daquilo que fomos e do que nos tornamos. Tampouco estamos a falar de algo já passado, mas daqueles passados inconclusos, nunca efetivamente superados.

Não apenas um passado redivivo, mas um passado ainda vivo.

Um dos sintomas de sua presença, além do racismo estrutural, é nossa débil cultura democrática. Ela se expressa, por exemplo, nas manifestações antidemocráticas e em seu correlato: mais que a simples sujeição ao governo ou ao Estado, o desejo de uma sociedade militarizada, autoritária, violenta e intolerante.

Foi essa fragilidade um dos elementos que tornou o Sul, muito particularmente, terreno fértil onde proliferaram grupos e ideologias fascistas e nazistas que por aqui vicejam desde os anos de 1930. E também isso não é coisa do passado: a antropóloga Adriana Dias, recentemente falecida, mostrou que as células neonazistas cresceram cerca de 270% no Brasil entre 2019 e 2021, a maioria na região Sul.

Não casualmente, os anos do governo Bolsonaro, cuja ascensão meteórica do baixo clero da Câmara dos Deputados ao Palácio do Planalto, franqueou uma espécie de salvo conduto a extremistas de toda ordem: neonazistas, fascistas, fundamentalistas cristãos, homofóbicos, machistas, racistas…

Se todos se sentiram, e se sentem, em alguma medida representados por Bolsonaro, não é apenas porque o ex-presidente incarna ódios e ressentimentos, lhes dá forma e sentido. Não se trata de algo apenas simbólico, por assim dizer. Há uma dimensão prática nessa relação, e ela desempenhou papel fundamental nos quatro anos de política de terra arrasada do governo Bolsonaro.

Em nome da propriedade privada

É exatamente esse o caso do trabalho análogo à escravidão. Não estamos diante de uma prática nova: nos últimos 10 anos, mais de 13 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados. Mais de 65% são trabalhadores rurais.

Bolsonaro, no entanto, passou os quatro anos de seu governo minimizando esses números. Desqualificou e atacou o trabalho das equipes de fiscalização, sonegou informações, defendeu empresas e empresários acusados e fez pouco caso das condições precárias e degradantes de trabalho das vítimas resgatadas, mais ou menos como o vereador Sandro Fantinel, seu apoiador.

Além disso, prometeu revogar a emenda constitucional 81, a PEC do Trabalho Escravo, que prevê o confisco de propriedades condenadas e seu uso para a reforma agrária ou habitacional urbano. Não revogou, mas reduziu drasticamente os recursos destinados à fiscalização e operações de combate ao trabalho análogo à escravidão, que passaram de R$ 68 milhões em 2019 para pouco mais de R$ 30 milhões no ano passado.

De acordo com o ex-presidente, as operações tornavam “vulnerável a questão da propriedade privada”, argumento parecido com o que brandiam, contra o abolicionismo, os escravistas do século XIX.

Em Bento Gonçalves, Caxias do Sul e Joinville, Bolsonaro venceu as eleições em 2018 e 2022. E com larga vantagem sobre seus dois adversários: em 2018, mais de 80% dos joinvilenses votaram em Bolsonaro, no ano passado, foram mais de 76%. Em Bento Gonçalves e Caxias do Sul foram, respectivamente, 75,8% e 66,4%.

Nem em 2018, e muito menos no ano passado, se pode dizer que o voto em Bolsonaro e a adesão ao bolsonarismo foram inocentes e desinformados. Todos sabiam quem ele era, o que significava e prometia e por isso, justamente por isso, votaram nele. Eleito uma primeira vez, Bolsonaro cumpriu o prometido, e seus eleitores voltaram às urnas para recompensá-lo.

Se as empresas e empresários são responsáveis por usarem mão de obra escravizada, os eleitores de Bolsonaro são os cúmplices coniventes de um crime praticado contra vidas que não têm, para esses eleitores, nenhuma importância ou valor. Como fizeram seus antepassados, sobre as fazendas e os campos de concentração.

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