A curadoria e a prática do olhar

Em entrevista á coluna, o professor, crítico de arte e curador Fernando Bini fala da profissão

Muita gente se pergunta como acontece uma exposição, quem são os profissionais envolvidos e quanto tempo leva todo o processo. Antes de ter a exposição pronta, como a visitamos, há uma série de decisões a serem tomadas por inúmeros profissionais – desde a lista de obras, passando pela configuração espacial, comunicação, projeto educativo, produção e até as etiquetas com legenda das obras. Para sanar algumas curiosidades sobre o tema, resolvi começar uma série de entrevistas com profissionais da área e mostrar a vocês, leitores, os bastidores deste universo.

Começo com uma figura de fundamental importância para o início de qualquer exposição – o curador (a). Há quem compare a função da curadoria em uma exposição de arte com a regência de uma orquestra. Não ouso colocar em xeque essa comparação, mas preciso acrescentar que o curador é um profissional que treina constantemente o olhar. Ele vê as obras e pensa em sua relação com o mundo, nas conexões que podem ser criadas e apresentadas ao público.

É importante destacar que as exposições se tornaram o meio pelo qual o grande público tem contato com a arte. E a história da arte desde o século XX está intrinsecamente ligada à história das exposições, cujos recortes foram pensados por curadores. O curador tem moldado a história da arte contemporânea quase tanto quanto os próprios artistas.

Para esclarecer algumas dúvidas sobre esta profissão, entrevistei o professor, crítico de arte e curador Fernando Bini. Seu interesse de pesquisa se dá principalmente em relação à arte paranaense entre o moderno e o contemporâneo. Além disso, foi uma figura essencial para a criação e estabelecimento de algumas das mais renomadas instituições de arte em Curitiba.

Entrevista com Fernando Bini

Gostaria de começar ouvindo um pouco sobre sua trajetória. Como você começou a ter contato com o mundo da arte e, principalmente, quando decidiu se tornar um curador?

A arte entra na gente sem a gente esperar, mais ou menos ela acontece. Desde muito pequeno, incentivado por amigos dos meus pais, eu descobri a pintura e assim foi. É sempre difícil você decidir por uma escola de Belas Artes, principalmente porque toda minha turma iria fazer engenharia, mas eu na última hora eu disse “não, não tenho nada a ver com isso”. […]

Então quando eu comecei a dar aula, principalmente na UFPR e também na PUCPR, tive contato com alunos que queriam ser artistas e a dificuldade é muito grande, eles não têm quem os apoie, quem escreva, etc. E havia um hábito em Curitiba, dos curadores, de quem organizava a exposição, de escrever um texto assim, de quinze linhas. Então a Marília Cecília Noronha, a Nilza Procopiak, o Sergio Kirdziej, e eu, que decidimos que iriamos ser mais teóricos do que artistas, dissemos “a gente faz a apresentação do artista desde que a gente possa escrever pelo menos uma lauda ou uma lauda e meia”.

A primeira coisa que entrou foram essas apresentações das exposições, então não se tinha muito a ideia de curadoria. O termo curador já existia, é claro, nos grandes museus, mas em Curitiba ainda não tinha nada – então foi praticamente a nossa turma que incentivou. E aí a gente começou a fazer curadorias, primeiro com esses alunos nossos que queriam expor e fazer apresentações, e a apresentação passou a ser um texto curatorial.

E alguns artistas começaram a discordar do que a gente dizia, gostavam do que foi escrito, mas diziam “meu trabalho não tem nada disso”. Mas é a leitura do curador. Você, como curador, faz uma leitura, você faz um caminho para as pessoas. E aí está a importância de você falar muito com o artista, de conhecer bem o artista. Por isso é agradável fazer uma curadoria quando o artista é teu amigo, tem uma relação, você conhece a obra dele. Quando é desconhecido é um pouco estranho, e aí dificulta, você tem que pesquisar muito.

Eu acho que isso também tem a ver com a próxima pergunta, que é sua produção ser voltada para os artistas paranaenses. Claro que viver aqui é um fator importante, ter amizades, mas muitos pesquisadores daqui não tocam nesse campo, não se voltam para a produção local. E por que você o fez? O que chama atenção na arte paranaense?

A primeira questão é o vazio de crítica. Ninguém nunca parou, e até hoje não se fez, um trabalho mais consciente de arte no Paraná, então fica sempre a dúvida de se há uma arte paranaense. A gente prefere muitas vezes usar “arte no Paraná”, já que a um tráfego muito grande e pensando no mundo de hoje é muito difícil você dizer assim, “olha isso é paranaense”. É paranaense porque foi feito no Paraná.

Aí vem a questão de eu ter me aproximado de alguns artistas. Do Fernando Velloso, desde antes da criação do Museu de Arte Contemporânea, do Ennio Marques Ferreira, que era o responsável no Departamento de Cultura. Além disso, no ateliê de gravura, quando eu comecei a fazer gravura, entrei em contato com eles todos. Convivia, batia papo, eu estava lá e era incentivado tanto pelo Ennio, pelo Virmond, pelo Velloso. A gente começa a ver esse panorama e descobrir coisas que estão se perdendo da história do Paraná.

E não é porque eu só me preocupo com o Paraná, não. A visão está sempre no Brasil e principalmente no exterior. Fizeram um trabalho sobre o meu trabalho e disseram que eu faço uma relação muito com o mundo externo, com os artistas internacionais “isto porque ele viveu tempos lá fora”, disseram. Não é só isso. É porque a arte não tem uma origem só. Essa relação é muito importante, entre um caráter erudito e um caráter popular e está sempre dentro da nossa obra.

Então você começa a tentar observar e aí vem a facilidade a arte paranaense está em sua volta, e eu comecei a ter esses amigos todos, esses artistas todos, dessa geração importante que foi a geração moderna, pós movimento de renovação. Mas eu realmente gosto da arte paranaense, pela facilidade que a gente tem de ir ao ateliê.

Claro que gosto de Matisse, todo mundo sabe que eu sou apaixonado pelo Matisse, mas quando vou falar sobre ele, eu não posso nem ter um Matisse, se eu pelo menos tivesse um quadrinho para poder falar sobre isso aqui… [risos]

Essa proximidade com a obra e com o artista é importante…

Ela é importante, não tem o que você fazer. Eu sempre digo, o bom de ser curador é poder pôr a mão na obra, porque nós temos um elemento sensível que é muito importante. Na Europa eu via os curadores ficarem com as mãos para trás, e eu aprendi isso, eu também fico com a mão para trás. Se eu não ponho a mão para trás eu ponho a mão na obra! Essa vontade de colocar, de você ver, principalmente a pintura, de ter o volume, etc. Então a proximidade da obra é sempre importante.

De fugir um pouco só do olhar.

Não é só o olhar né. O Europeu coloca que é só o olhar, mas não. Esse olhar é muito sensível, é o corpo todo que é envolvido, até o próprio Van Gogh dizia, “eu me destruo quase inteiro para fazer um quadro”. Quer dizer, não é só a minha mão, é o corpo todo, eu saio extenuado dali. O João Cabral de Melo Neto dizia que ele suava várias camisas para fazer uma poesia. Realmente há uma força do sujeito ali, eu acho que o crítico tem que ver isso.

Agora quero fazer uma pergunta um pouco mais abrangente. Como se dá o início do processo de uma curadoria? Começa com uma ideia, com um diálogo com o artista, com uma leitura…

Aí você tem dois problemas. O primeiro é se o artista é vivo. Se sim, a minha posição é que o artista tem sempre razão. Se ele está vivo e vamos fazer a curadoria dele, você vai ouvi-lo totalmente. Claro que você vai começar a construir uma ideia sobre a obra dele, que pode não ser a ideia dele, pode estar traçando um outro caminho. A nossa ideia é abrir portas, ver a obra de uma maneira, e então discutir com o artista. Porque tudo isso é um trabalho consciente, mas vem muito estudo, muita conversa com o artista, saber o que ele pensa, porque ele fez, porque ele usou aquilo, e inclusive dados técnicos que não vão aparecer no teu texto. Mas é importante saber como é que ele pinta, por exemplo, o Velloso não pinta na sua frente, jamais, por mais amizade que eu tenha, por mais que eu visite o ateliê dele, nunca vi o Velloso pintar. Ele demonstra o que usa e como usa, mas ele nunca fez um quadro na minha frente. Então o problema é que a pintura é particular, individual. Então isso você tem de aprender com o artista, conversar bastante, viver, que caminhos eles estão tomando, o que gostam, qual é a preferência.

E o outro caso é quando você pega, por exemplo, para fazer uma exposição do Alfredo Andersen. Daí uma exposição histórica não tem mais sentido, porque já está cheio de livros de história, e então você vai ver um caminho, você vai estudar o caminho. Por exemplo, de que maneira o Alfredo Andersen abre o viés da modernidade no Paraná, até que ponto ele tem uma influência ali. Eu não peguei muita curadoria de artistas falecidos, normalmente, eu fiz aproveitando que os artistas estão vivos.

E então no momento que você escreve, o artista descobre um pouco de si, por isso que gosto de trabalhar com artistas [vivos], dou o texto para ele, para modificar, se é aquilo ou se não é aquilo. E alguns cortam teu texto inteirinho [risos]. Mas acho que sempre o artista tem razão.

E essa troca com o artista é sempre muitíssima bem-vinda para a curadoria.

Muito, e muitas vezes também trocar com outras pessoas. A curadoria não pode ser uma coisa de uma pessoa só. Se o artista está ali para te ajudar, ótimo, se não está, tem que arranjar alguém para discutir. Mas sempre o artista tem razão [risos].

E por toda a sua fala, imagino que não exista um passo a passo para fazer curadoria. Cada curadoria é única ou existe algum tipo de método?

É claro que existe um método, que é você realmente pesquisar sobre o artista. E se perguntar “O que nós vamos fazer? Que exposição é essa?” Tem uma série de perguntas que você faz no primeiro momento para decidir qual é o caminho. Decidido o caminho, você vai ver o que pertence aquele caminho. Há toda uma investigação, um trabalho de pesquisa, e então você escolhe as obras que vão entrar naquele percurso e faz mais ou menos faz um roteiro.

E agora como a gente pode explicar, de maneira simplificada, para um público que não vive neste universo da arte, quem é e o que faz um curador.

Acho que nem precisava saber que existe, porque acho que toda essa questão que está por trás é a infraestrutura de uma exposição. Então isso vai valer para o curioso, porque o importante é que toda exposição tenha um texto, que a gente pode chamar de texto curatorial ou um texto que define a exposição que abra portas e ajude o espectador a olhar.

Tem aqueles que não leem o texto, não precisam, que vão ter sua absorção, vão ter suas ideias e vão construindo, depois leem o texto e acham “não tem nada a ver com aquilo que eu vi”. Acho que tá certo, mas a maior parte das pessoas não sabem o que estão vendo, elas têm certo aquele preconceito todo que a arte é aquilo que é figurativo e se não tem a figura não tem mais sentido, “isso eu também faço e etc.”. Então, esse encaminhamento que você dá, texto na parede, texto inicial, isso que dá o caminho.

Agora é claro que normalmente tem os curiosos que querem saber como é que essa exposição nasceu, daí tem que explicar. Aí não é só o curador, normalmente o curador é o diretor do filme, que leva a fama, mas não é ele que faz sozinho. O diretor do filme é alguém que junta todas as partes em uma só, mas se não tiver um montador, produtor, etc. o que o diretor fez não vale nada. Numa exposição é a mesma coisa, tem que ver o curador dentro de um processo.

Agora diferente é um curador de acervo, porque justamente é a pessoa que tem o conhecimento completo daquele acervo, tudo, cada obra de lá ele pesquisou. E normalmente quando você chega para fazer uma exposição de acervo, perde-se muito tempo para ver todas as obras, você não tem na memória tudo o que está lá. Então o curador do acervo é importante. Esse sim devia ser conhecido, porque se você tem uma dúvida sobre qualquer obra, ele tem que ser chamado para explicar, porque ele sabe todos os dados, procedência, onde se encaixa, como chegou ali.

Bini, que conselho você daria para um jovem curador, ou para alguém que está tentando começar nessa área?

Pesquisar e achar um caminho que você gosta. Claro, sem fechar muito o círculo.

Por exemplo, para mim facilitou muito a arte paranaense, mas eu não estou fechado nisso, a arte brasileira é que tenho vontade de trabalhar. Então é importante determinar o que você quer fazer: arte do sul do Brasil, arte latino-americana. Minha sugestão é que você ache um caminho, pesquisar e caminhar por ele, e se apaixonar. Mas acho que você já foi mordida por essa mosquinha da paixão [risos].

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