Muito além da visão

Já nos primeiros dias de alta, fui percebendo a presença de vários animais diferentes no meu dia a dia. Avistei um pelicano no caminho da fisioterapia, um coelhinho dormindo no lugar do lixo, grandes joaninhas na minha salada e um imenso sapo na geladeira

Tem uma expressão que diz que é preciso ter cuidado para não comprar gato por lebre. No meu caso, eu confundo gato com sacola plástica, almofada e toalha dobrada. O AVC que tive me proporcionou ver tudo diferente. Literalmente.

Tudo começou quando eu ainda estava na UTI. Durante uma das visitas, uma parente do paciente internado ao meu lado estava conversando muito animada. De repente percebi um movimento estranho na altura de suas pernas e, olhando melhor, vi uma galinha! Uma galinha batendo asas e cacarejando no meio da Unidade de Tratamento Intensiva. Isso não poderia estar acontecendo! Que tamanho desrespeito! 

Chamei um dos técnicos de enfermagem e pedi para ele tirar aquele animal dali imediatamente. Mas, assim que ele olhou na direção da ave, me disse que não havia bicho algum ali e que era para eu me acalmar, pois possivelmente estaria tendo mais uma reação adversa dos fortes medicamentos que estava tomando. Como tive muitos problemas com delírios no hospital, primeiramente consenti. Mas assim que a galinha apareceu novamente, gritei apontando para ela. Então, uma das enfermeiras que estava ao meu lado, falou ao meu ouvido que eu estava apontando para a bota de franjas da visitante. Para mim, a bota era uma agitada galinha marrom. Toda vez que a moça mexia a perna, a bota se transformava em uma galinha.

Obviamente a situação virou piada no centro intensivo, mas como aprontei horrores lá (tentando fugir várias vezes), essa confusão apenas entrou na lista de situações que proporcionei. Sem dúvidas, fui uma paciente diferenciada. Porém, aos poucos fui percebendo que não conseguia identificar os lugares em que estava e os rostos da equipe médica. Confesso que, naquele momento, não me preocupei com isso. Tinha recém-saído de duas cirurgias cerebrais, e aquilo devia ser consequência dos meus miolos revirados.

Já nos primeiros dias de alta, fui percebendo a presença de vários animais diferentes no meu dia a dia. Avistei um pelicano no caminho da fisioterapia, um coelhinho dormindo no lugar do lixo, grandes joaninhas na minha salada e um imenso sapo na geladeira. Só que, na verdade, esses bichos não existiam. Eram apenas sacolas plásticas, tomates cerejas e um abacate. Essas presenças, que no início divertiram as pessoas próximas a mim, com o tempo fizeram com que elas começassem a desconfiar que essas aparições fossem alguma sequela mental, e mais uma vez comecei a ser vista como louca.

Até que um amigo meu que é radiologista chegou para passar uma semana comigo. Como médico, ele sabia que após duas lesões cerebrais era preciso descobrir quais eram as minhas sequelas, a fim de tratá-las e me garantir uma melhor qualidade de vida. Para cumprir este propósito, ele se mudou para a minha casa para avaliar minhas percepções de perto. Realmente, o que ele fez por mim foi inacreditável. Coisa de irmão.

É claro que a enxurrada de bichos continuou a aparecer, assim como transpareceu a minha imensa dificuldade em frequentar supermercados. Era simplesmente horrível. Eu não conseguia comprar o que queria, além de ficar horas perdida nas gôndolas. Fiquei impossibilitada de comprar alimentos sozinha, sempre precisava depender de alguém para isso.

Ao se deparar com todos esses sintomas, meu amigo foi buscar as tomografias que tinham ficado no hospital (naquela época eu não sabia que temos o direito de levar todos os nossos exames para casa, algo essencial para o tratamento de todo paciente) e foi então que nos deparamos, pela primeira vez, com a minha lesão no lobo parietal direito, que se tornou meu famoso desmiolo, e que deu origem a tantas histórias. Depois de muito estudo e conversas telefônicas com outros colegas de trabalho, meu amigo chegou a um possível veredicto: eu tinha agnosia visual.

Convido a você a “googlear” este termo depois de ler este texto, porque é meio bizarro mesmo, já que agnosia visual é a perda da capacidade de identificar objetos com a visão. Trocando em miúdos, nem tudo o que eu vejo é a realidade. Isso acontece porque os nervos que ligam o meu olho ao cérebro foram desfalcados com a hemorragia. Essa parte não existe mais. O que acontece é que, ao analisar um determinado objeto, meu cérebro substitui a sua identificação por outra semelhante em minha memória. É por isso que vejo tantos animais no meu dia a dia e teimo em confundir maçã com cebola. Pois é, já passei altos perrengues por causa disso.

Existem vários tipos de agnosia e a maioria é adquirida por meio de uma lesão cerebral. Como conheço poucos agnósicos, vou relatar especificamente o que acontece comigo. Eu vejo os objetos e pessoas, até porque meus globos oculares não foram danificados, mas no primeiro momento eu não consigo identificá-los, preciso de pistas para saber com o que ou quem eu estou lidando, e para analisar esses detalhes, utilizo meus outros sentidos.

Em um supermercado, por exemplo, preciso tocar os alimentos ou ler a plaquinha que o designa, ou descobri-los pela sua localização. Já deu para imaginar o porquê frequento os mesmos lugares: não é uma preferência de marca, mas pelo leiaute da loja. Com pessoas, eu preciso de mais informações, como: voz, acessórios e movimento.

Sabia que cada pessoa tem um movimento único? Pois tem, acho que isso deve ser construído por genética e história de vida, pois facilmente confundo parentes ou irmãos que possuem fisionomias diferentes. Para mim, à primeira vista, os movimentos deles são os mesmos. Porém, se uma pessoa estiver quieta e parada, isso só piora a minha situação para reconhecê-la. Nesse caso, a minha técnica é procurar seus acessórios. Não é à toa que passei a gostar muito mais de tatuagens e piercings após a minha lesão. Eles me localizam no mundo. Roberto Carlos que me perdoe, mas talvez eu saiba mais do que ele a importância dos detalhes.

Após meu neurologista concordar sobre a probabilidade de eu ter agnosia visual, passei a ter minhas percepções avaliadas em testes cognitivos, e foi aí que a minha neuropsicóloga entrou na história. Um dos testes proporcionados por ela que achei mais interessante foi o que desenhei em uma folha em branco algumas figuras recém-vistas numa moldura. Ao contrário dos desenhos concretos, delineio muito bem figuras abstratas. Aliás, nesse quesito sou acima da média, porque meu cérebro é craque em copiar e colar figuras sem sentido. Depois da lesão cerebral, ele faz isso o tempo todo.

Não há cura para a minha agnosia, já que ela é fruto de uma perda permanente de neurônios, então o tratamento é concentrado na adaptação, que é basicamente a intensificação dos outros sentidos. Nenhuma pessoa agnósica é menos inteligente (estudos de Luria e Oliver Sacks comprovam isso), mas, ao meu ver, esse distúrbio neurológico é capaz de nos tornar mais sensíveis e empáticos. Enquanto uma pessoa com agnosia aparentemente está absorta, na verdade, ela está analisando e sentindo absolutamente tudo ao seu redor.

Acredito que um fenômeno semelhante acontece com todos os que nascem ou adquirem uma deficiência: intensificamos imensamente todas as funções que temos para nos adaptar a um mundo não criado para nós, e com isso ganhamos novas habilidades, muitas vezes surpreendentes. É claro que cada caso é um caso, varia de cada pessoa, mas aos poucos, vou percebendo que enxergo além das aparências, enxergo as pessoas por dentro. A minha irmã dá pequenos saltinhos quando fica feliz, assim como eu. Meu tio range os dentes quando fica pensativo e um dos meus amigos mexe constantemente o meio do rosto quando está refletindo. Ainda não sou especialista em movimentos pessoais porque adquiri esta habilidade somente há quase três anos, porém, acredito que ao ter a minha percepção visual danificada, eu passei a enxergar mais além. E tenho certeza de que o mesmo acontece com todos os sobreviventes: apesar de todas as adversidades, sempre podemos ir mais além.

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