A vida é muito mais complicada que o xadrez

E olha que há muito mais jogadas possíveis em um jogo de xadrez do que há átomos no universo. Sério

O xadrez é um jogo muito interessante. Eu sou um entusiasta, muito embora minhas habilidades fiquem bem abaixo das de um jogador mediano.

Meu interesse voltou depois de assistir à série O Gambito da Rainha (a tradução do título fez uma concessão poética, pois o termo correto em português seria O Gambito da Dama, como a peça é chamada oficialmente por aqui).

Hoje, há diversos canais no YouTube que se dedicam à transmissão de partidas de campeonatos oficiais, análise de partidas antigas, ensino de aberturas, meio-jogos e finais. Acompanho muitos com pequena obsessão.

Uma coisa peculiar no xadrez é que se fazemos um movimento de peão, pode acontecer de muito mais adiante descobrirmos que, pelo desenvolvimento da partida, teria sido muito melhor se essa peça de menor valor tivesse ficado onde estava ou, então, que estivesse uma casa adiante. Nossos movimentos presentes influenciam e muito os acontecimentos futuros.

Há uma lenda que diz que os grandes mestres enxergam o desenrolar de uma partida cinco, dez ou mesmo quinze lances adiante. Porém, isso se aplica apenas a algumas situações específicas. O entendimento deles de um jogo, muitas vezes, vem de forma muito mais natural, por conhecimento de milhares e milhares de posições similares e, através de uma mistura de memória e intuição. E, às vezes, claro, são capazes de calcular linhas de jogadas em todos os seus possíveis desdobramentos muitos lances à frente, principalmente aquelas que envolvem jogadas forçadas.

Quantas vezes, você, no escuro do seu quarto, se pegou pensando sobre o que teria acontecido em sua vida se tivesse tomado aquela atitude e não aquela outra? É muito parecido com o xadrez. Mas a vida é muito mais complicada que xadrez. E olha que xadrez é bem complicado.

Um pouco de matemática

Os matemáticos calcularam as possibilidades de desenvolver as peças de uma partida nos quatro primeiros lances.

Dá aproximadamente 315 bilhões de possibilidades. Isso mesmo. Apenas nos quatro primeiros lances.

Claro, isso inclui um monte de jogadas basicamente ruins.

Para os 10 primeiros lances, as possibilidades de configurações diferentes dão 170 quatrilhões.

Vou escrever o número em algarismos para dar uma ideia melhor da coisa:

170.000.000.000.000.000 de possibilidades nos 10 primeiros lances.

Claro que isso inclui uma porção de lances ruins que nem um jogador mediano faria.

Uma partida completa, que tem geralmente uns 40 lances, o número é 10120. Isto é, 10 seguido de 120 zeros.

Isso é mais do que todos os átomos que estimativamente existem em nosso Universo. Só para constar, a estimativa de átomos no universo é de algo entre 4×1078 e 6×1079

Esse número foi calculado por um cara chamado Claude Shannon, que também é considerado o pai da Teoria da Informação.

Claro, mais uma vez, vários lances ruins entram nessa conta.

Foto: Alena Darmel/Pexels.

Onde entra a vida nessa conta

Note que o xadrez é composto por:

  • 32 peças (16 brancas e 16 negras)
  • Cada peça tem um tipo de movimento específico
  • Os movimentos são limitados por um território quadrado dividido em 64 casas (32 claras, 32 escuras)
  • Embora as peças e os tabuleiros e as peças sejam tridimensionais, o comportamento desses elementos se dá apenas em duas dimensões
  • As regras são claras, relativamente simples de serem entendidas

E essas regras claras e simples tornam bastante limitado o que pode acontecer dentro de um tabuleiro em partidas que podem durar entre 2 (sim, existe um xeque-mate em dois lances) e, em média, 40 lances (algumas partidas podem ter muito mais que isso em lances).

É bastante limitado pelas características que expus acima.

E, ainda assim, chegamos a mais possibilidades que átomos no universo.

Agora considere sua vida:

  • Há muito mais de 32 personagens e muitos deles são interpretados por você mesmo
  • Nenhum movimento ou comportamento é limitado e, embora haja limitações sociais e biológicas, ainda assim os movimentos e comportamentos possíveis são muito mais numerosos que os de uma peça de xadrez
  • Enquanto o xadrez se dá em um quadrado de 8 casas por 8 casas, não há tais fronteiras na vida
  • Nossos comportamentos não se dão em um plano bidimensional, mas tridimensional, sem falar nas dimensões emocionais e no tempo que pode ser vivido de diferentes maneiras em suas instâncias de passado, presente e futuro (enquanto no xadrez o tempo da partida é contado em lances; não me refiro ao tempo do relógio que é usado em partidas oficiais)
  • As regras da vida não são claras: embora haja leis, moral e ética há muitas coisas em que temos liberdade para agir (inclusive não seguir as leis)

Considerando isso, as possibilidades de nossas vidas, se pudessem ser calculadas, certamente excederiam o número de átomos de 100 bilhões de universos.

Então, quando estiver pensando em sobre como poderia tudo ter acontecido de um jeito melhor em sua vida, se você tivesse feito isto ou aquilo, lembre-se: ninguém tem a capacidade de calcular tantas jogadas à frente.

Algumas coisas, dá para calcular que darão errado, pois se trata de uma jogada particularmente ruim. Mas nem sempre estamos cientes ou nos ensinaram que esta ou aquela jogada entregava uma peça ou entregava xeque-mate.

Mas nem tudo, a maioria das coisas, nesse mar de possibilidades, está sob o nosso controle.

Leva anos e muito estudo para se tornar um grande jogador de xadrez. Mesmo sendo um grande jogador de xadrez, você talvez se torne um dos dez melhores ou o melhor (hoje esse posto é ocupado pelo norueguês Magnus Carlsen).

Agora, em se tratando de vida, não espere que todos os seus lances sejam os melhores.

Às vezes, a gente joga pra perder e nem sabe.

O bom é que, nela, às vezes, a gente pode até levar xeque-mate. Mas, mesmo depois disso, a vida continua.

Pensando bem, até mesmo no xadrez, o jogo, é possível iniciar uma nova partida.

Não desista.


Para ir além

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