Lembrar o julgamento de Eichmann em meio à pandemia

No atual contexto de pandemia de Covid-19, temos nos acostumado com números cada vez mais altos de casos e mortes, gráficos, médias móveis e projeções

Em abril de 1961, 60 anos atrás, iniciava-se um dos julgamentos mais emblemáticos do século XX. Adolf Eichmann, capturado no ano anterior na Argentina, para onde havia escapado após a 2.ª Guerra Mundial, era levado perante o tribunal em Jerusalém, Israel, e julgado por ser um dos principais responsáveis pela logística do extermínio de milhões de pessoas, principalmente judeus, pelo regime nazista e por seus colaboradores. Viria a ser condenado à morte – a única vez que o Estado de Israel impôs tal pena.

As provas que incriminavam Eichmann eram abundantes e havia pouca ou nenhuma dúvida de que era culpado das acusações. Outros aspectos do julgamento, no entanto, foram e são discutidos em seus mais diversos âmbitos e vieses: a legalidade ou não de sua captura na Argentina e envio para julgamento em Israel; a espetacularização com fins políticos do julgamento; a validade e o significado da aplicação da pena de morte; sem falar, é claro, das características do próprio Eichmann, cuja mais célebre análise veio da filósofa Hannah Arendt, que desenvolveu o conceito de “banalidade do mal” e descreveu Eichmann pela sua “incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa”.

O julgamento de Eichmann ainda representou um ponto de virada na construção da memória do Holocausto. Nos primeiros 15 anos após a guerra, o genocídio de cerca de seis milhões de judeus era, em geral, abordado como mais um dentre os diversos crimes (muitas vezes ainda descritos como de guerra) cometidos pelos nazistas. Mesmo na memória coletiva judaica, sobretudo em Israel, o Holocausto era um tema recheado de silêncios e tabus, com exceção das resistências armadas, cujo heroísmo era praticamente o único aspecto visto como “digno” de rememoração.

O fato do julgamento de Eichmann ser um marco para a singularização do Holocausto em relação aos demais crimes nazistas e à Segunda Guerra Mundial, assim como a tragédia (e não somente o heroísmo) ser central na memória coletiva, está muito atrelado a uma particularidade desse julgamento: a presença do testemunho de mais de uma centena de sobreviventes. Isso diferenciava esse julgamento também de outros de criminosos nazistas até então, como os conhecidos tribunais de Nuremberg, que se baseavam principalmente em provas documentais e muito pouco em testemunhos das vítimas.

O acesso a essas vozes, rostos e trajetórias permitiu a criação de um vínculo do público (uma vez que o julgamento foi televisionado) com essas pessoas – e não somente com informações impessoais e estatísticas. Em certo sentido, rompia-se justamente com a forma de pensar (ou de não-pensar) de Eichmann ao permitir-se observar a história do ponto de vista de outra pessoa: no caso, o sobrevivente do Holocausto.

A noção de testemunho ganhava outra conotação. O professor da Unicamp Márcio Seligmann-Silva nota, a partir do termo em latim para testemunho, que este poderia ter dois sentidos. O de testis, como o depoimento de um terceiro neutro em um processo; e o de superstes, que designa a pessoa que atravessou uma provação. Os sobreviventes convocados a depor no caso Eichmann o faziam muito pouco como testis – boa parte deles vinha de regiões da Europa pouco relacionadas ao trabalho de Eichmann – e mais como superstes. Enquanto a testemunha tradicional de um tribunal carrega consigo uma verdade sobre um passado, a verdade do segundo tipo de testemunho diz mais sobre o presente e o futuro. Nesse sentido, era possível, 16 anos após o fim do Holocausto, e ainda hoje, estabelecer um vínculo de empatia com essas pessoas.

Essa relação empática é que torna possível encarar o Holocausto como um evento histórico capaz de carregar lições para o presente. Vemos na vítima do genocídio perpetrado pelos nazistas não uma fração de uma massa de 6 milhões de judeus mortos, mas um indivíduo como nós. Não por acaso, nas décadas seguintes ao julgamento, instituições de memória e educação sobre o genocídio, como o Museu do Holocausto de Curitiba, passaram a apostar na personificação das vítimas como um meio de estabelecer conexões entre as trajetórias desses indivíduos e os dilemas, conflitos e opressões da atualidade, como o racismo, a xenofobia, a LGBTI+fobia, entre outros.

Mas há um motivo para que, dentre os aspectos que poderiam ser discutidos sobre o julgamento de Eichmann, esse texto se volte à personificação das vítimas. No atual contexto de pandemia de Covid-19, temos nos acostumado com números cada vez mais altos de casos e mortes, gráficos, médias móveis e projeções. Essas estáticas são sem dúvida fundamentais. Elas permitem dimensionar a pandemia, orientam medidas sanitárias e, assim esperamos, permitirão responsabilizar aqueles que, dotados de poder para fazer diferente, por meio de ações ou omissões, contribuíram para esse cenário de centenas de milhares de mortes, muitas das quais evitáveis.

No entanto, conhecer e entender esses números é insuficiente – e ainda corremos o risco de entrar na absurda discussão de “quantos CNPJs foram perdidos”. Conforme atesta o crescente destaque dado aos testemunhos de sobreviventes do Holocausto justamente a partir do julgamento de Eichmann, a personificação é fundamental para gerar vínculos empáticos. “CNPJs” têm números e estatísticas, mas não possuem histórias de vida, sonhos, gostos, paixões, medos…

Cabe destacar que personificar as vítimas é completamente diferente da ideia de que só nos sensibilizamos quando a perda é de alguém próximo ou semelhante. Quem só sente a dor de outro quando este lhe é próximo é porque, na condição de ser humano, já está morto. A empatia por meio da personificação não busca a semelhança, mas a humanização das vítimas e, portanto, precisamente a diferença. O que caracteriza a humanidade como tal é justamente sua pluralidade. Iniciativas como o memorial virtual “Inumeráveis” (https://inumeraveis.com.br/) são fundamentais para a tomada de consciência (mesmo que, para alguns, tardia) da dimensão humana da tragédia que se abate sobre nós.

Seis milhões de judeus mortos no Holocausto certamente não é o mesmo que se tivessem morrido 6 mil, assim como 350 mil mortos por Covid no Brasil não têm o mesmo significado, motivos e consequências do que se tivéssemos perdido 35 mil pessoas. Mas, em um contexto em que tomar ações coletivamente (como manter distanciamento, usar máscaras, vacinar-se) tem se mostrado tão fundamental. é imprescindível, para o sucesso (ou minimização do fracasso) do combate à pandemia e o aprendizado futuro, conhecermos os rostos e as histórias de cada um por trás desses números.


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