“Pé na estrada”

Não posso afirmar com certeza se era eu quem levava o livro, ou se era "On the Road" que me levava para viajar

Havia uma promessa de emprego, o conhecido de um amigo que dissera algo sobre uma vaga. Alguém havia arranjado um encontro com uma garota. Uma carta contava que estavam todos na Costa Leste ouvindo jazz, frequentando os clubes, ouvindo as histórias dos andarilhos. Um telegrama intimava: Venha de uma vez! Eram motivos suficientes para se abandonar o emprego e a família em Nova York e cruzar os Estados Unidos passando depressa pelas planícies ensolaradas, pelos campos de milho e algodão, pelas terras dos índios, pelas montanhas nevadas. Só era preciso descolar um carro — ou uma carona. O resto se arranjava.

Estou falando de “On the Road – Pé na estrada“, clássico de Jack Kerouac, que foi provavelmente o jovem mais legal dos Estados Unidos dos anos 1950 e morreu como o mais aborrecido dos conservadores, em 1969. (Sim, sinto dizer: depois de impressionar os times universitários com suas habilidades no futebol americano, de cruzar repetidas vezes o país da maneira que lhe era possível, de ir ao México, de mergulhar nos lisérgicos, de recitar poemas pelado em companhia de Allen Ginsberg e Neal Cassady, o senhor Kerouac, com mais de 45 anos, assistia televisão tranquilamente, reclamava do Kennedy e maldizia qualquer cabeludo que aparecesse em sua porta sem ser convidado.) Voltemos ao livro: nos cem anos do nascimento do autor, celebrados em 2022, decidi que precisava escrever mais uma vez sobre a obra — sim, mais uma vez, porque, durante a faculdade em jornalismo, cada vez que um professor me propunha “escrever sobre um livr…” eu imediatamente dizia “On the Road!”, como se a literatura inglesa se resumisse àquela datilografia.

Existe um motivo para ter escolhido a palavra “datilografia”. Jack Kerouac escrevia de maneira insólita. Há uma tradição literária, que começa com Flaubert, da composição exaustiva e laboriosa das frases. Nas cartas para ​​Louise Colet e George Sand, nas quais relatou o processo criativo de “Madame Bovary”, o autor narrou a busca pela le mot juste, a palavra perfeita. Isso o levava a repetir em voz alta as frases, de modo obcecado, até encontrar a melhor sonoridade, o termo ideal. Proust, claro, vai beber na mesma fonte, e é por isso que foi necessária toda sua vida para escrever “Em Busca do Tempo Perdido”. Hemingway também trabalhava assim, e James Joyce, claro, e Gay Talese, que escreve um livro a cada década, escolhendo cada palavra, pendurando as folhas prontas num varal, como se fossem roupas bem lavadas.

Dostoiévski não escrevia assim, como podemos perceber em “O Idiota”, composto em meros quatro meses. E tampouco Jack Kerouac. Para escrever “On the Road”, o autor atacou, de modo frenético, possuído por uma quantidade suficiente de drogas, um rolo de telégrafo. Seus livros têm frases que acompanham o fluxo do pensamento, tal qual encontramos no Saramago, para dar um exemplo da literatura portuguesa. Era um método muito diferente do defendido por Tom Wolfe, no alvorecer do new journalism, e do que era considerado uma boa literatura. Por isso, Truman Capote disse, sobre Kerouac, This is not writing, it’s typewriting (Isso não é escrever, é datilografar). Tal datilografia, depois de muito editada, em consequência das subsequentes recusas dos editores, foi ovacionada em um artigo do New York Times e se tornou o livro de cabeceira de todos que se identificaram com a geração beatnik.

Foi o meu caso. Dos 19 aos 25 anos, por aí, viajei tantas vezes de ônibus pela América Latina quanto me foi possível. E foram muitas. Algumas das vezes com o orçamento tão apertado que a alimentação de três dias foi garantida por um quilo de queijo e vinte pães velhos. Para chegar a Machu Picchu pela primeira vez, caminhei onze horas pelos trilhos do trem e subi a escadaria a pé. Ameaçaram me apedrejar em algum lugar do Peru, fui abordado e averiguado vezes suficientes pela Polícia Nacional, descobri que cruzar uma fronteira caminhando era sempre um enorme perigo. Visitei como convidado todos os sítios arqueológicos, porque o ingresso era caro e o jeito era ir conversando, despacito. Fiz amizade com todos os vendedores de artesanías. Ah, e teve a vez em que me fingi de religioso para conseguir uma carona entre Cobija, na Bolívia, e Brasileia, no Acre. Entre a Venezuela e a Colômbia, fiz amigos ingleses que depois descobri serem paraguaios. E, quando passei por Honduras e Guatemala, a bordo de um ônibus escolar amarelo, modelo norte-americano, uma criança de uns onze anos me disse: “Señor, es demasiado peligroso para usted aquí”. Era um sinal para cair fora.

Confesso que sobrevivi. Em todas as ocasiões, me acompanhava meu exemplar de “On the Road”, com tradução do Eduardo Bueno, que hoje descansa ao lado da enorme mochila azul, longe da minha vista pelo risco de ambos me arrastarem para uma nova aventura. Não posso afirmar com certeza se era eu quem levava o livro, ou o livro quem me levava para viajar. O fato é que adorava me ver como o velho Kerouac e seus amigos, correndo mundo, coletando histórias dos outros viajantes (ou “vagabundos iluminados”), ansioso por absorver cada palmo de terra da nossa maravilhosa América, o mais incrível e interessante dos continentes.

“On the Road”

Para além das belas e longas frases do livro, do relato pessoal, honesto, cru e intenso do que foi ser jovem no pós-Guerra, dos relatos dos clubes de jazz, tão bem narrados que é possível ouvir a música tocar e as paredes suarem, sempre me cativou nos beatniks o fato das experiências não serem relativizadas, ponderadas, defendidas. Viajar, ver o mundo, estar vivo, aproveitar, era um absoluto, um imperativo, que se fechava em si. Da mesma forma que não se questiona o religioso do porquê de dedicar sua vida à salvação da humanidade, ou o artista dos motivos que o levam a escolher a arte, o único tema que não está em “On the Road” é uma justificativa para se atravessar os Estados Unidos em busca do carpe diem dos anos 1950. Apenas, porque sim. Porque estava lá. Porque estamos vivos. Porque o tempo é curto. Porque é preciso viver. É preciso viver!

Termino essa coluna me esforçando para voltar às palavras e parar de olhar para o mapa da América Latina. Passei duas vezes por Puno, no Peru, mas não tive tempo de visitar as ilhas flutuantes. E seria demais ver o deserto de sal mais uma vez, bem como descer até as profundezas da terra, em Sucre, onde a prata foi descoberta. Algumas obras são muito mais do que o enredo que as conduzem, muito mais do que a tradição literária na qual se firmam: certos livros encerram uma forma de pensamento, um meio de vida, e é isso que faz sua grandeza. É o caso de “On the Road”. Quando o livro novamente me chamar, sinto que irei.

Livro

“On the Road – Pé na estrada”, de Jack Kerouac. Tradução de Eduardo Bueno. L&PM Editores, 358 páginas, R$ 42,90.

Sobre o/a autor/a

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