Qual a melhor tradução de Crime e Castigo?

No caso específico de Dostoiévski, as primeiras edições do autor russo no Brasil foram feitas a partir de uma terceira língua, que servia de “ponte”, como espanhol, francês e o inglês

“A ação se passa no tempo atual. Um estudante, expulso da universidade, pequeno-burguês de origem (…) resolve matar uma velha que empresta dinheiro a juros.”

Dostoiévski, em carta, 1859.

O texto de hoje não será sobre um lançamento ou sobre um autor em particular e sim sobre alguns aspectos das traduções. Mas, para não perdermos de vista o assunto, eu escolhi Crime de Castigo, de Dostoiévski, que resolvi reler nas férias, depois de muitos anos da primeira leitura.

Para falar disso tudo, eu preciso fazer uma introdução, que talvez seja um pouco cansativa e por isso peço paciência ao leitor. A tradução é um “problema” desde a Antiguidade. Líderes sumérios e egípcios da Antiguidade mantinham sábios tradutores em seus palácios. Era um modo de ter contato com o amigo/inimigo. Isso ocorreu na China antiga, no período das “descobertas” europeias, na colonização, na Guerra Fria. A tradução é uma necessidade.

Mas quando falamos em tradução, em verdade falamos não apenas de um tipo de tradução, de uma língua original e de uma língua de recepção e vice-versa. No caso das traduções filosóficas, das religiosas e das literárias, a questão é bem mais complexa. Como traduzir, por exemplo, um livro sagrado médio-oriental para uma língua que em que não existe a concepção de “Deus” ou de “ressureição” ou mesmo de “dilúvio”?

No geral, a primeira situação que vem à cabeça dos leigos é a escrita, mas a escrita é um problema menor quando surgem os conceitos.  “Traduzir”— outro exemplo –  a escrita egípcia da décima oitava dinastia é um problema, mas com certeza traduzir o conceito de “maat” para qualquer idioma ocidental é um problema muito maior. Tal conceito não existe em nenhuma outra língua. Então, precisa ser explicado, “traduzido” num outro patamar, com outros recursos linguísticos.

Fiódor Dostoiévski. Foto: reprodução.

Digamos que, em termos de tradução, temos duas situações a serem enfrentadas, para além do sistema de escrita: um sistema, uma estrutura linguística, e uma rede de discursos. Não se deve deixar de lado, por óbvio, que ambas caminham juntas. A questão é complexa mesmo e aqui não teria espaço para dissertar sobre tudo isso. Até mesmo o exemplo de “maat” acima gera toda uma controvérsia no seio da Linguística eu não nasceu agora. Só devo lembrar que a tradução é algo tão emblemático da nossa construção histórica como sociedade(s) que desde a própria invenção da escrita ela acaba aparecendo como mito, como fantasma ou como metáfora, seja do entendimento, seja da falta dele.

No caso específico de Dostoiévski, as primeiras edições do autor russo no Brasil foram feitas a partir de uma terceira língua, que servia de “ponte”. E isso não ocorreu apenas com Dostoiévski, claro. As línguas-ponte mais comuns no Brasil foram o espanhol (pela proximidade linguística e pelo fato de os espanhóis investirem em traduções), o francês (durante décadas uma língua de difusão cultural, sendo até os anos 1970 ensinada mal e parcamente nas escolas brasileiras, antes do inglês) e o inglês (por motivos de domínio cultural mesmo). Famosos escritores brasileiros “traduziram” grandes escritores mundiais a partir de uma terceira língua. Por vezes, os tradutores faziam cotejo de diversas traduções para outros idiomas até chegarem a uma “tradução” para o português. Como o russo, o japonês, o chinês, o húngaro, por exemplo, não são línguas muito difundidas no Brasil (a despeito de termos uma grande comunidade de descendentes japoneses), então o jeito era traduzir de uma língua em que já houvesse tradução do escritor que queríamos publicar.

E até hoje, quando não encontramos um autor distante para ler em português, o jeito é lê-lo numa língua próxima. Já falei aqui que os argentinos são os primeiros a traduzir Murakami… e assim a coisa caminha.

Então Dostoiévski demorou um tantinho a chegar ao Brasil com traduções diretas do russo. Não bastava alguém que lesse em russo. Era necessário um tradutor, que conhecesse o russo, e não só isso. Que conseguisse trazer para a língua de recepção, no caso o português, os jogos verbais, as frases entrecortadas, as imensas construções sintáticas, a ironia, os nomes inventados, enfim, toda magnitude de Dostoiévski. O trabalho de cada tradutor não é fácil – e no caso de escritores como Dostoiévski é hercúleo. Valeria lembrar que não se trata de um escritor do século XX e que seria importante tanto o conhecimento “da época linguística” de Dostoiévski quanto a capacidade de “traduzir” o escritor para uma linguagem do século XXI.

As primeiras versões diretas do russo apareceram no final do século XX, mas agora temos edições revisadas, algumas vinte ou mais anos depois da primeira, e versões de tradutores que não apenas conhecem o russo profundamente como conhecem a teoria linguística que embasa um trabalho de tradução.

Para você que me segue, eu comparei diversas traduções de Crime e Castigo e escolhi as duas melhores disponíveis no mercado brasileiro: a tradução de Paulo Bezerra e a tradução de Rubens Figueiredo. E, agora, o mais complexo: dentre as duas melhores, escolher uma: eu escolheria a do Paulo Bezerra e explico o motivo. Bezerra traduz obras técnicas e os comentários nas notas de rodapé são interessantíssimos, de um grande estudioso

Caso você opte pela compra de um dos tradutores citados, a tradução de Paulo Bezerra é a da Editora 34. Já a tradução de Rubens Figueiredo (com uma capa para lá de discutível) é da Todavia.

Sobre Crime e Castigo, o que eu teria para falar depois dos comentários dos dois tradutores? Não muita coisa. Como leitor, eu prefiro Os irmãos Karamazov, mas isso é coisa de amante da leitura. Escolha você a sua! Mas não deixe de ler Dostoiévski.

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