Navegar é preciso

Ao longo da vida, eu já havia coletado uma porção de histórias de mar, embora nunca houvesse embarcado: sobravam-me histórias do mar, faltava por os pés num barco

Desde sempre, eu sonhava em velejar. Na verdade, desde que li Juventude, do Joseph Conrad, no qual o autor narra suas primeiras viagens, como membro da marinha mercante inglesa, partindo de Londres rumo ao misterioso Oriente. Talvez a influência maior tenha sido Moby Dick, que conta a história do grupo de marinheiros norte-americanos que saem, guiados pelo capitão Ahab, em busca da maior baleia já avistada, da qual sequer o nome pode ser pronunciado. Ou do conto de Sophia de Mello Breyner Andresen sobre a ilha de Vig. Ou do Cem dias entre Céu e Mar, do Amyr Klink. Ou Fernando Pessoa.

Ao longo da vida, eu já havia coletado uma porção de histórias de viagens, embora nunca houvesse embarcado: o marinheiro que era incumbido de ficar no mastro e gritar quando avistasse a linha do Equador; a narrativa de que imaginavam o marco imaginário como uma sequência de boias, flutuando amarradas na metade do Atlântico. O capitão que recomendava beber um copo de água do mar, antes de embarcar, para que o imediato jamais enjoasse. As técnicas pelas quais se escondiam tesouros no meio do travesseiro, para serem vendidos no próximo porto. Sobravam-me histórias do mar, porém nunca havia de fato embarcado, exceto por um ou outro passeio de escuna, aqui e ali, que mais frustravam do que realizavam.

Algo que havia me marcado foi o diário do capitão Vilfredo, que comandou o barco da família Schurmann em duas voltas pelo mundo. Lembro dele contando, de boné na cabeça e cabelos brancos, que nunca havia velejado antes dos quarenta anos. Foi numa viagem de aniversário de casamento, em Salvador, que ele pela primeira vez navegou, como passageiro, e se encantou. Os anos seguintes foram se dedicar completamente ao sonho de se tornar navegador. E as décadas seguintes, o mundo. Sempre acreditei que se daria o mesmo comigo: ao aprender a velejar, estava certo que um arrebatamento me possuiria e não conseguiria deixá-lo. E, em 2021, me vi pronto para finalmente começar.

As aulas de vela foram um presente. Um dia, recebi o telefonema do professor Peter, que me perguntou, com sotaque inglês, se eu sabia nadar. Achei que era trote. Antes que eu desligasse, ele explicou que haviam me presenteado com quatro aulas de vela. Acho que, de tanto me ouvir falar sobre isso, as pessoas se aborreceram e decidiram me presentear de uma vez. De um interesse, velejar havia se tornado uma obsessão. Eu já havia lido toda a literatura que encontrei sobre o tema, de Homero à Roald Amundsen, com o diário da conquista do Pólo Sul. O Paratii — Entre dois pólos, do Amyr, Klink, já estava decorado. Já havia visitado Paraty, não para a festa literária, mas para ver as ruas descritas no livro. E recomendado há dezenas de pessoas que lessem A viagem de Shackleton, de Alfred Lansing. E inclusive comecei a organizar um catálogo sobre afogados no mar, que vai de Gabriel Garcia Márquez (O afogado mais bonito do mundo) a Machado de Assis (A igreja do diabo). Faltava apenas o mar.

Amyr Klink com o barco no qual fez a travessia entre a Namíbia, na África, e o Brasil em 1984. Foto: acervo Amyr Klink.

Às aulas começavam às oito, do domingo, bem longe de casa. Parecia tortura, mas acordei cedo, sem rolar um segundo além do necessário na cama. Ao chegar, conheci os barcos, o professor e os outros dois alunos. A primeira uma hora e meia de aula foi sobre o vento, e a posição que a vela deveria estar em cada modalidade, o barlavento, abrir tudo, leme para cá, velas para lá. O contravento, inclina o barco em 45 graus, joga o corpo, trava o leme. Se o barco vibrar, sustenta. Se o vento parar, faz o bordo, passa por baixo, puxa o leme. Era complicado. Passamos a montagem do barco e me senti novamente nas aulas de química, naquele preciso momento em que decidimos parar de prestar atenção e começamos a desenhar. Felizmente, na primeira aula naveguei acompanhado do professor, e pude falar a vontade sobre literatura marítima enquanto ele me ensinava a desvirar o barco. Ele não havia lido nada daquilo, mas veleja como ninguém.

Na semana seguinte, revi meus livros e reli alguns trechos de Moby Dick. Me sentia como Ismael, assistindo o culto do capitão Ahab, prestes a embarcar. Infelizmente, não havia nenhum Queequeg para me acompanhar e proteger. Assim, lá fui eu para o domingo seguinte, igualmente cedo, não tão confiante. Já não pensava em dar a volta ao mundo, mas em conseguir atravessar um braço de mar sem virar o barco. Professor Peter me aguardava, super disposto, montando um barco. Desta vez, foram vinte minutos de explicações sobre o vento e me soltou para navegar, sem querer ouvir nada sobre literatura inglesa, aventuras marítimas, minha coletânea de afogados na literatura ou a história de como Hemingway patrulhou o Caribe em busca de submarinos nazistas na Segunda Guerra. Navegar era preciso.

Me embarcaram no menor barco possível, que era do tamanho de uma banheira. Vela e leme. Eu não tinha a mínima ideia do que estava fazendo. Os primeiros minutos foram apenas manter as mãos firmes enquanto o barco seguia, mas, uma vez entre céu e água, eu deveria ser capaz de virar o barco em direção a uma ilhota, contorná-la e retornar. Eu tentava apenas não morrer. Comecei a lentamente mexer a vela, para tentar entender que posição fazia qual movimento. Porém, tinha medo do vento bater forte e virar. Como uso óculos, achei que se o barco virasse, e meus óculos caíssem, ia ficar à deriva e sem enxergar, esperando resgate. Seria um péssimo início. Fui devagar, mas não cheguei longe. Parei no meio da água.

Tive a ideia de observar a vela dos outros barcos, colocar na mesma posição, e assim velejar. Deu certo, mas para o lado errado. Chegar na tal ilha era difícil demais. Outros barcos passavam perto, inclusive com crianças, e eu tinha medo de acertar alguém. Naquele dia, havia uma competição náutica, e tive receio de sem querer invadir a disputa com meu barco do tamanho de uma banheira, apavorando a todos, como nos filmes do Rowan Atkinson. Se comecei o projeto pensando em Joseph Conrad, lá estava mais parecendo o Mr. Bean. Terminei atolado, exausto, preso na lama, com a mão no queixo tal qual na estátua do Rodan, esperando que me salvassem. Um marinheiro gritou da margem que eu deveria descer do barco, virar na mão, e voltar a navegar. Preferi apenas esperar o resgate, que levou uns quinze minutos.

Nesse meio tempo, pensei que tudo que sabia de literatura oceânica de nada servia para de fato navegar.

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