Tratamento precoce funciona graças à ignorância

Na maioria dos casos, a Covid-19 causará nenhum sintoma ou sintomas leves que passam em cerca de 10 dias sem intervenção nenhuma, mas quem toma o "kit" atribui "cura" a remédio

Quando estudante no Cefet-PR (quando ainda se chamava Cefet), ouvi um professor de biologia brincar que vender “cura” para resfriado era o melhor negócio do mundo. Porque, como qualquer pai/mãe de criança pequena sabe na prática, resfriados incomodam por cinco, sete dias e depois passam. O que faz muita gente acreditar que o remédio milagroso realmente funciona, afinal o mal se foi, né não? Garantia de cliente satisfeito.

O professor, uma figura curiosa e extremamente inteligente que me mantinha atenta à aula apesar da pouca intimidade com o assunto, continuava explicando que muito do que é vendido como “cura” da gripe apenas ameniza sintomas para promover uma melhora na disposição do doente enquanto o vírus cumpre seu percurso e larga aquele corpo que não lhe pertence no prazo esperado.

O tratamento precoce para Covid-19 segue o mesmo caminho. A doença causada pelo coronavírus provoca quadros graves de perda de função respiratória em muita gente. Mas os dados disponíveis até o momento apontam que a grande maioria das pessoas infectadas não vai apresentar sintoma nenhum. Uma revisão extensa de pesquisas sobre o assunto realizada pelo Centro de Medicina Baseada em Evidências da Universidade de Oxford aponta que entre 5% e 80% dos infectados serão assintomáticos.

Mas por que uma faixa tão grande de variação? Porque há diferenças significativas entre como os países estão rastreando casos. Na Coréia do Sul, por exemplo, um caso suspeito provoca uma sequência de exames em todas as pessoas que tiveram contato com a pessoa. Além disso, há realização constante de exames na população em geral. No Brasil, por conta da baixa quantidade de exames disponíveis, a tendência é que se teste apenas casos sintomáticos.

Ou seja, uma pessoa qualquer pode ter contato com um caso confirmado de Covid-19 e não desenvolver a doença. Ou pode ter um ou outro sintoma, mas sem que eles evoluam para um caso grave. Na realidade, a probabilidade disso acontecer é maior do que a evolução ser ruim e essa pessoa desenvolver um caso grave.

Se considerarmos a média dos percentuais calculados pelo estudo de Oxford, em cada 100 casos de uma pessoa infectada, 43 não terão qualquer sintoma e 38 terão sintomas leves. Outros 14 terão casos graves e 5 severos. Destes, 10 irão morrer, se considerarmos

Ou seja, 81 pessoas dessas 100 vão deixar de ter qualquer sinal da doença depois de 10 dias, independente do que fizerem. O que permite perfeitamente que alguém tome qualquer remédio do chamado “kit Covid”, acabar “curado” e atribuir a “cura” ao remédio, quando a única coisa que aconteceu foi a doença seguir seu caminho natural.

Isso estimula o cidadão comum a confundir experiência pessoal com dado significativo. Ele “se curou” com o “kit Covid”, portanto funciona. Só que não houve “cura” nem há ligação entre a superação da doença e o uso do remédio.

Isto é o que se chama de ausência de causalidade. Ou, traduzindo, não há prova de uma relação direta entre um fato – tomar um remédio – e outro – ficar curado. Se 81 pessoas entre 100 vão se livrar da doença de qualquer forma, isso vai acontecer mesmo que a pessoa tome o “kit Covid” ou se trate com, digamos, urina de gato, frutas roxas, carne de alpaca, chá de hortelã ou qualquer outra “cura” proposta.

É isto também que explica porque inicialmente a cloroquina, para citar o “tratamento precoce” mais famoso, chegou a ser considerado promissora, uma ideia já devidamente refutada por inúmeros estudos. Porque lá no começo da pandemia não estava claro ainda quantas pessoas foram infectadas e qual percentual efetivamente desenvolvia casos graves e severos. Mesmo hoje temos o uso da azitromicina, um antibiótico, no tratamento de casos graves de Covid, não porque o remédio trata a Covid-19 em si, mas porque ele é usado para atacar infecções secundárias nos pacientes com a doença.

Esse uso, no entanto, não se justifica em pessoas com casos leves, principalmente porque antibiótico nenhum deve ser usado à toa dado o risco de desenvolvimento de resistência bacteriana. Isso, claro, não impede os mercadores da ilusão do “kit Covid” de continuar promovendo este e outros remédios.

O que mantém a “eficácia” fantasiosa do “kit Covid”, porém, é o estímulo constante à ignorância e ao desespero. O país perde todos os dias oito ônibus biartulados cheios de gente para a doença. E mantém outras milhares internadas em hospitais, muitas em estado precário e intubadas. A economia afunda, as pessoas estão passando fome. E uma minoria na medicina, no jornalismo e no governo sofre de um mau-caratismo crônico. Um ambiente ideal para uma “cura” dessas.

Não se faz isso à toa. A possibilidade de um tratamento mantém as pessoas confiantes, o que é essencial para que se continue a trabalhar, consumir e a aceitar um governo que atuou ativamente para impedir a população de se vacinar, seja por não ter comprado doses suficientes da vacina, seja por sabotar o relacionamento da Fiocruz e do Butantan com os fornecedores chineses, atrasando a produção de vacinas em solo nacional. O brasileiro está assustado, casado e faminto. Quer tirar a máscara, só precisa de um empurrão que alguns estão mais do que contentes em dar, só que em direção ao precipício.

Além dessa ignorância, temos outras. O país não rastreia de forma adequada novas variantes do vírus em solo nacional, nem testa a população. Tanto o governo federal, quanto os governos estaduais e municipais adotam métricas confusas para maquiar a gravidade da pandemia. Usa-se, por exemplo, o número de curados, o que é impreciso, dado que isto não considera sequelas nem complicações pós-alta. Calculam ocupação de leitos sem considerar quem está na fila aguardando um ou internado fora de isolamento, em leito comum.

Também calcula-se o índice de transmissão com base em exames, feitos apenas em quem é sintomático, gerando um resultado falsamente baixo. E não se rastreia adequadamente focos de transmissão, nem são públicos os casos de surtos em escolas, empresas nem mesmo instituições de atendimento de saúde.

E, por fim, os governos insistem em divulgar o total de doses de vacina aplicadas, uma métrica que não se usa em nenhuma outra doença alvo de vacinação no país. O correto em qualquer campanha de vacinação seria divulgar o percentual de imunização, o que no caso da Covid-19 só existe após a aplicação da segunda dose do imunizante em quase todos os casos. Apenas a vacina da Janssen, que acabou de chegar ao país com um lote de apenas 3 milhões de doses, é de aplicação única.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Tratamento precoce funciona graças à ignorância”

  1. Qual sua formacao na area da saude mesmo?

    Nao é a toa que deixou de ser obrigatorio ter curso de jornalismo para escrever colunas eem Pasquins.

    Talvez ate pessoas sem formacao superior possam escrever coisas mais legitimas que essa sua “coluna”

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