A gente até que gosta, mas “bi” não é de “biscoito”

Eu sou uma mulher cis que namora outra mulher cis e - pasme - não sou lésbica

“O nosso relacionamento não é lésbico?”, ouvi da minha namorada um dia desses. A minha namorada: uma mulher que se identifica como lésbica há um bocado de anos. Tomei o meu tempo para franzir o cenho antes de largar um conciso “não” na mesa. Por dentro, só me ocorria que, oras, se eu sou bissexual, como é que o nosso namoro vai ser sapatão, amada? Ou ainda: como é que algo que depende de mim pra existir apaga a minha própria identidade?

Mas a dúvida era genuína e me propus a explicar, mais uma vez, que sou uma mulher que namora outra mulher e não sou lésbica. A letra da sigla “LGBT” que melhor me veste está logo à direita: é “b” de “bissexual”. Eu sou bissexual e sei disso desde a infância, mas demorei bastante tempo para reivindicar essa identidade porque a norma se esforça – e não é pouco – para apagar identidades como a minha. 

Como todo mundo, eu fui sistematicamente empurrada para a monossexualidade. Sabe como?

Por muito tempo a minha família não deu conta de processar a minha bissexualidade sem me achar muito sem vergonha (e perder a vergonha é pecado por quê?, pergunto retoricamente). A questão central era: se eu tenho a possibilidade de gostar de homens, como manda a cartilha cristã, por que diabos escolheria uma vida profana? 

Quando disse ao meu primeiro namorado que sou bissexual, após anos de intimidade, ouvi que estava errada. Para ele, a definição adequada seria “aberta” (na imaginação dele, provavelmente a um threesome). 

Os meus amigos sempre quiseram medir o meu afeto: fala aí, Jess, ele mora mais pra lá ou mais pra cá, hein? 

Algumas vezes não passei no crivo da confiança. Há mulheres lésbicas que escolhem deliberadamente não ficar com mulheres bissexuais porque temem ser fetichizadas e trocadas por um cara qualquer.

O que eu quero dizer com essa meia dúzia de exemplos é que a bifobia não é coisa isolada, ela também é estrutural. Somos um grupo dissidente e invisibilizado. Pense rápido: quantas vezes você viu personagens bissexuais na ficção? O apagamento das nossas identidades é sistêmico – e um dos problemas é que sem representatividade a gente tem dificuldade de entender a própria vivência. 

Eu sou bissexual e faço questão de afirmar a minha bissexualidade porque posso ser lida por alguém que também é, mas ainda não sabe completamente. Eu quero dizer a essa pessoa que existimos e que as nossas relações não podem se sobrepor a quem somos. 

Eu sou bissexual porque é na pluriversidade que eu me encontro. Eu sou bissexual porque o binário de gênero não dá conta de classificar o meu desejo. Eu gosto de homens, mulheres e mais (também não sou panssexual, mas isso é discussão pra outra hora).

Aprendi com uma das minhas melhores amigas que relações não precisam ser adjetivadas. Hoje vivo com uma mulher – e não deixo de ser uma mulher bissexual nem por um minuto. 

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “A gente até que gosta, mas “bi” não é de “biscoito””

  1. Muito legal ler isso por aqui, junto com o texto da Beatriz Galindo (e não esperava menos do Plural)! Vocês arrasaram demais!
    Também me entendo como bissexual, e, por até então só ter tido relacionamentos mais sérios com homens, creio que as pessoas me veem como hetero. Isso não me incomoda, mas também não me agrada, porque também me deixa em um não-lugar.
    Textos como esse só agregam no camarote, e ajudam a desmistificar (e “desfetichizar”) essa conversa.
    Obrigada!

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