Houve confronto, mas o mais importante é que Curitiba se mobilizou contra o racismo

Nesta segunda, o que eu vi foi uma mobilização em defesa das pessoas que sempre sofreram com o preconceito

Não, a queima da bandeira não foi a parte mais importante do que aconteceu ontem em Curitiba. Houve vandalismo e houve quebradeira. Houve reação da polícia e houve tristeza. Mas olhando para o cenário como um todo, não é isso que eu vejo.

Sou descendente de negros. Eu mesmo me considero negro, embora muita gente que me olhe possa achar que não sou. (Para um americano, por causa de uma lei estúpida de dois séculos, ter 1/16 de sangue negro é ser negro; sem dúvida por esse e por outros critérios eu sou negro).

Eu tenho cabelo duro (segundo meu irmão, impermeável). Tenho lábios grossos. Tenho pele mais escura do que a maior parte das pessoas com quem eu convivo. E sou uma mistura de todo tipo de gente – o que me torna pardo e, segundo o IBGE, negro.

Mais do que ser negro, sou alguém que se importa com a discriminação, com o racismo. Com o jornalista, pude fazer algumas matérias sobre isso – e me sinto um pouco como pagando uma dívida. Como tradutor, pude colocar em português autores importantes para essa história, como James Baldwin, Paul Beatty e Colson Whitehead.

Mas vivo em uma cidade majoritariamente branca. Uma cidade onde os negros existem, mas não são vistos. Uma cidade que deixa seus negros à margem. Uma cidade que, segundo minha memória, jamais se mobilizou de fato contra o racismo – contra o racismo velado e cruel que permeia nossas vidas.

Nesta segunda, o que eu vi foi uma mobilização em defesa das pessoas que sempre sofreram com o preconceito, que sempre foram excluídas, que nunca tiveram as mesmas oportunidades que os habitantes brancos da mesma cidade em que eles vivem.

Vi gente saindo de casa com disposição para se manifestar, se expor, e dizer que isso não é mais admissível. Que nunca foi normal. Que não vai mais ser aceito. Isso na capital que se orgulha de ser um Brasil Diferente. Que tem como único monumento aos negros que construíram seu passado uma praça na periferia.

Não é pouco. E não pode ser apagado pela irresponsabilidade de quem não soube se comportar à altura do momento.

O país vive um momento delicado. É preciso ter posturas firmes. Eu sou a favor da democracia – e contra o fascismo. Sou a favor da igualdade – e contra o racismo, a misoginia, a homofobia. E acho lindo ver finalmente alguém se mobilizar por essas causas que tanto falam ao meu coração aqui ao nosso lado, na nossa casa.

Bem-vinda, Curitiba contra o racismo. Teu parto está sendo duro, mas valerá a pena. Um dia tudo isso vai passar, as portas quebradas terão sido consertadas, a bandeira estará em seu lugar de volta, e o que vai ficar são os sentimentos que a gente souber criar nas pessoas.

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