Obituários da floresta

Embora o governo brasileiro tenha o dever constitucional de proteger os povos indígenas, a única coisa que fez até agora foi vista grossa

Nunca imaginei que um dia me tornaria uma obituarista. Assim como nunca imaginei que um dia iria até a padaria de máscara ou apertaria o botão do elevador com o cotovelo. A Covid trouxe novidades impensáveis ao nosso mundo interno e externo e, no meu caso, uma delas foi juntar-me ao projeto Inumeráveis, que tomou para si a tarefa tão bela quanto hercúlea de escrever um obituário para cada vítima do novo coronavírus no Brasil, mostrando que pessoas não são números.

Passei a mergulhar nas histórias de cada vítima e descobrir coisas interessantes, como a faixa etária dos falecimentos, que atinge um espectro bem mais amplo do que se imagina, com muitas ocorrências a partir de quarenta anos. Também descobri coisas banais e encantadoras, como a paixão nacional pela cerveja no boteco da esquina. Ou pelo bolo com café, no caso das falecidas mais velhas. Mas o mais curioso foi para onde esse projeto me levou. Sempre tive interesse pelos indígenas, tanto que já passei um tempo com os yawanawas, escrevi a respeito, e dei até um jeito de encaixá-los no meu último romance. Quando vi, sem que procurasse, lá estava eu frente a frente com os indígenas de novo, só que dessa vez de um jeito triste. Precisávamos obituar suas mortes por Covid-19.

Começamos com o povo mais afetado naquele momento: os kokamas que, em maio, já totalizavam 57 mortes pelo vírus. Um número alto, especialmente considerando sua população, que não chega a 10 mil habitantes no Brasil. O que mais chama a atenção nos relatos dos povos originários não é a dor da perda. Nem sequer a dor da falta de despedida, tão citada pelos outros familiares de vítimas do coronavírus. O que salta aos ouvidos é a angústia de ser tratado como nada. O kokama Anselmo Rodrigues Samias, a quem obituei, é um exemplo. Foi admitido no Hospital Militar de Guarnição de Tabatinga, próximo à Reserva Indígena de Sapotal. Depois que ingressou, sua família não teve uma única notícia dele. Samias morreu e os familiares só foram notificados 48 horas depois, novamente sem ter informação alguma sobre a evolução do seu quadro e as circunstâncias da sua morte. Sua mulher e filhos só viram o corpo de longe e foram embora como chegaram: sem receber palavra.

O descaso precede os corredores hospitalares. Embora o governo brasileiro tenha o dever constitucional de proteger os povos indígenas, a única coisa que fez até agora foi vista grossa. Hoje há cerca de 20 mil garimpeiros ilegais dentro da reserva ianomami, que levam embora o ouro e trazem o vírus para um povo vulnerável, não só em termos de imunidade, mas por morarem em grupo, dividirem os mesmos utensílios e não terem assistência hospitalar. A contaminação entre os ianomanis já fez uma vítima de 15 anos e segue crescendo, enquanto o garimpo vem devorando a terra de maneira assustadora: só em março de 2020, essa atividade degradou o equivalente a 114 campos de futebol na reserva. Na Terra Indígena Parque de Tumucumaque, perto da fronteira do Suriname e acessível apenas por via aérea, quem levou o vírus foram os militares do Exército e da Força Aérea Brasileira, sem que tenham levado a contrapartida: nessa reserva e na vizinha Paru D’Este, há agora várias pessoas com sintomas, mas não há testes, tampouco pouco leitos.

Epidemias não são uma novidade para os indígenas. Dos 2 mil povos originários que existiam no Brasil, só restam 305, mortos em parte por outras moléstias trazidas pelos brancos, como a varíola e o sarampo. A Covid também não é santa, mas o que está matando mesmo é aquela praga chamada negligência. A maioria desses povos não tem leitos, máscaras e, às vezes, nem sabão. Resultado: até começo de junho, quando esta crônica foi escrita, o Brasil tinha 94 povos contaminados e 247 vítimas, entre elas, líderes da luta pela demarcação e anciãos que carregavam conhecimentos prestes a se extinguir.

Alguns lunáticos dizem que o vírus foi produzido em laboratório pela China. Se a produção em laboratório fosse verdade, arriscaria dizer que quem bancou foram certos setores da sociedade brasileira. Para grileiros, madeireiros e garimpeiros, o vírus foi um presente, o melhor amigo da motosserra, o funcionário do mês e do semestre, não só dizimando os guardiões da floresta mas também distraindo a sociedade para a boiada passar. Em abril de 2020, o desmatamento da Amazônia atingiu o maior índice dos últimos dez anos, com 592 quilômetros quadrados de floresta derrubada, área maior que a da cidade de Porto Alegre, um aumento de 171% com relação ao mesmo mês do ano anterior, de acordo com os dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD). E tem quem queira premiar esses criminosos. A MP da Grilagem pretende condecorar com uma escritura de posse quem vem invadindo e devastando essas terras. E quem vai gritar contra? A Funai é que não, já que agora é presidida por um xodó da bancada ruralista, favorável à exploração de recursos nas terras indígenas. É como se o nosso país tivesse uma doença autoimune, em que o corpo ataca os seus próprios tecidos.

Tudo isso levou o Brasil a conseguir um feito incrível: foi a única nação do mundo onde as emissões de carbono cresceram durante a pandemia. Isso porque as queimadas e o corte das árvores também emitem carbono. Então, ainda que estejamos com parte dos nossos aviões e carros parados, sem poluir, como nos outros países, estamos aquecendo o planeta através da destruição das áreas verdes.

E a coisa ainda vai esquentar. Ô se vai. No ritmo que estamos indo, nos próximos dez anos vamos bater em pelo menos 2 graus de aquecimento, resultando em secas na região sul e sudeste, subida dos oceanos, enchentes devastadoras e destruição de 99% dos corais, afetando toda a vida marinha. Sem falar no efeito rebote da floresta: como mostra um estudo publicado em maio pela Science, quando o aumento de temperatura bater em 2 graus, as árvores podem deixar de acumular carbono e passar a liberá-lo, criando mais um problema na nossa já profusa cascata de desastres climáticos.

Obituando as vítimas de Covid, percebi que brancos costumam ter uma história de vida marcada por dramas pessoais, como o enfrentamento de um câncer ou a perda de um ente. Já negros e indígenas têm histórias marcadas por dramas coletivos, deixando claro que suas trajetórias não têm opção senão arquearem-se a alguma forma de resistência, como o citado Samias, que dedicou sua vida para difundir a língua kokama no Alto Solimões, tentando salvar a sua cultura do apagamento. Ou como Paulinho Guajajara e tantos outros que não foram vitimados pelo vírus mas merecem um obituário em letras garrafais, já que foram assassinados por defender a floresta.

A maioria das vidas indígenas do Brasil está na Amazônia. Façamos jus a essa luta que, por sinal, também é nossa. Se tem outro epitáfio que nunca quero escrever é esse: foi floresta tropical mas levou tanta machadada que morreu savana.


Esse texto foi publicado orginalmente na plataforma de mudanças climáticas Fervura https://www.fervura.net

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