O espírito de 1988

A grande questão que deveria tirar o nosso sono é por que não somos capazes, como Nação, de garantir esse mínimo para todos os brasileiros e brasileiras

A Constituição de 1988 elegeu o conceito de Dignidade como eixo norteador dos Direitos Fundamentais e das funções precípuas da República. A Dignidade é, então, o princípio e o fim da nossa Carta Maior. Não há outra função mais relevante nem conjunto de tarefas mais urgente. E essa constatação de urgência derivou do cenário real no qual o país se encontrava, depois dos séculos de descaso e, particularmente, após os 21 anos desastrosos dos governos militares. “O país vai bem, o povo vai mal”, admitia o próprio ditador Médici quando os índices de crescimento do Produto Interno Bruto expandiam-se mas as benesses que o dinheiro pode proporcionar não alcançavam a maioria dos brasileiros. Como é até hoje, quando quase metade de todos os trabalhadores não recebem nem dois salários mínimos para viver. E que ainda há fome para milhões e insegurança alimentar para dezenas de milhões.

A Dignidade implica poder viver sem medo permanente, diário. A dignidade é poder fazer algum planejamento sobre o futuro, mesmo que esse futuro seja o próximo mês. Mas é também muitas outras coisas que tantos têm e há tanto tempo, que não percebem que, em um país tão desigual, são privilégios: água na torneira, esgoto na moradia, luz e geladeira, café da manhã na mesa, rua com calçamento na frente, segurança na esquina. Para muitos, tudo isso é um sonho distante, porque milhões de brasileiros não têm onde morar. E aí vem creche e escola para os filhos, hospital, formação técnica e profissional, trabalho. E por aí vai.

A grande questão que deveria tirar o nosso sono é por que não somos capazes, como Nação, de garantir esse mínimo para todos os brasileiros e brasileiras e só depois pensarmos em nossos umbigos, em nossos sonhos de riqueza e fruição, que de resto são saudáveis e legítimos, desde que não tenhamos de pisar com nossos sapatos caros sobre a miséria e o abandono de tantas pessoas.

Há uma ordem lógica que fundamenta a Dignidade: é preciso garantir o necessário, depois o contingente para, enfim, acessar o supérfluo. Não faz sentido falar em direito sobre algo que sobra na sua mesa enquanto falta na mesa de outro. Essa sobra não é um direito, é uma prova de nosso fracasso como Nação. E também é prova de nosso fracasso a indignação de tanta gente com as políticas que buscam compensar minimamente essas discrepâncias. Falhamos como cidadãos. Resta-nos a posição de bárbaros entre bárbaros, cada um com seu fuzil real ou imaginário na mão, garantindo sua “propriedade” contra os “arruaceiros e vagabundos”. Mas nada precisava ser assim. O espírito de 1988, a nossa Constituição cidadã, marcou um terreno diferente, estabeleceu um projeto de país tão mais fraterno e responsável. Faltou-nos aprender que toda utopia não implica um lugar que não existe, mas um lugar que ainda não existe. E que depende de nossa vontade realizá-lo.

Agora estamos diante de uma eleição que apresenta dois caminhos: o da recuperação desse espírito civil (e humano, demasiadamente humano) e o de seu esquecimento. Esquecer que temos compromisso com a miséria, com a doença, com a dor e com o ausência de direitos dos outros. Esquecer que somos uma Nação e não tribos em guerra constante. Lembrar as lições dos que pensaram nesse problema pela primeira vez: ou abrimos mão de nosso desejo de querermos tudo para nós sem nos importarmos com os outros, ou seremos consumidos por nossa ganância e insensibilidade.

Nada disso implica que não se deve desejar o desenvolvimento individual, a busca por conforto e mesmo por riqueza. Evidente que não. Um projeto de Nação, o nosso projeto de Nação, preconizado pela Constituição de 1988, buscou apenas reforçar a ideia básica de que, entre cidadãos comuns, ninguém deve largar a mão de ninguém. Não há cidadão que não seja merecedor de um tratamento digno e de um esforço comum para garantir essa dignidade.

É isso que está em jogo. É isso que vale o seu voto.

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