Histórias de praça

Por ali Francisco passava as tardes com dona Áurea, que andava muito doente das pernas e pouco a pouco da cabeça. Duas vezes por dia, pontualmente às oito e às seis da tarde, ele estava ali para fazer a varredura, pelo minucioso prazer herdado dos ancestrais japoneses: colocar as coisas em ordem, como se a ordenação da beleza fosse uma forma de se ter com Deus

Essa é uma história baseada em fatos reais ocorridos essa semana na Praça do Seu Francisco, e no entanto contada sem qualquer compromisso com as evidências. É preciso arranjar outros jeitos de contar histórias para que elas nunca deixem de ser contadas.

Assim como o movimento induz à aceleração, uma história conduz à outra, de tal modo que às vezes, uma história escutada pode ser tomada como coisa vivida. A memória tem dessas trapaças e por isso, toda história tem um pé naquilo que inventa para si.

Na esquina da Marechal Mallet com a Manoel Eufrásio há um terreno que pertence a não sei quem. Havia quem reivindicasse posse sem título de propriedade, burocracias infindáveis, linguagem de cartório e outras coisas difíceis de entender.

Por ali Francisco passava as tardes com dona Áurea, que andava muito doente das pernas e pouco a pouco da cabeça. Duas vezes por dia, pontualmente às oito e às seis da tarde, ele estava ali para fazer a varredura, pelo minucioso prazer herdado dos ancestrais japoneses: colocar as coisas em ordem, como se a ordenação da beleza fosse uma forma de se ter com Deus.

Os especuladores estavam de olho na quadra, e como se sabe, construtoras não suportam espaços vagos. Todo canto há que ser recoberto pelas ganas do dinheiro e assim, devagar e imperceptivelmente, a velha aristocracia do Juvevê vai perdendo espaço para a ascensão da classe média e do péssimo gosto: edifício Manhattan, London Residence, Le Chateau, Boulevard não sei o quê.

Tudo começou com um incêndio da casinha, do qual Francisco varreu até as cinzas. Depois dele muitos outros seguiram perpetuando o mesmo gesto, apenas pelo gosto de ver o florescer da amoreira.

“ O que nasce da amoreira, mãe?” – perguntou o menino que brincava na praça.

“ Amor, filho.”

Foto: Tami Taketani/Plural.

Espaços vazios são mal vistos dentro da cidade. Talvez porque não tenhamos espaço para tudo aquilo que, paradoxalmente, o vazio comporta. “Aqui será uma farmácia de conveniência”, pensava o homem com ares de semideus e ameaça nas mãos. Querendo ser muito grande, ele chega no terreno com um trator imenso e dá fim à amoreira e ao brinquedo das crianças. Uma infância infeliz tende a destruir eternamente os brinquedos do seu afeto, dizem.

Já Francisco era outra espécie de gente. Um senhor miúdo que com o passar da velhice foi se curvando em direção ao chão, o que lhe possibilitou plantar muitas coisas nos canteiros. Como sábio oriental que era, o velhinho sabia que vazio não se ocupa, se consagra.

A cada dia ele dava adornos ao terreno,

que virou uma praça e convite às borboletas,

ao repouso da mãe que jorra leite e cansaço,

a gastura da infância que costuma correr depressa,

à iniciação das línguas atrás da árvore,

ao sono profundo dos garis ao meio dia,

ao banho de sol pelas frestas da cidade mais cinza ao sul do Equador,

e à pausa de quem precisa apenas parar.

A amoreira plantada por Francisco deu frutos por muitas outras primaveras.

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