Exame desigual do Ensino Médio

O recrudescimento das desigualdades sociais e econômicas no Enem durante a pandemia da Covid-19

O Exame Nacional do Ensino Médio reúne multidões de adolescentes, jovens e adultos com um objetivo em comum: ingressar no ensino superior. No entanto, a inscrição no Enem sempre dependeu do pagamento de uma taxa de inscrição, que custeia a impressão e a distribuição das provas por todo o Brasil. Por isso, a ampliação dos critérios para a isenção da taxa de inscrição, em 2012, foi uma política pública essencial para equalizar as condições de participação dos estudantes brasileiros no Enem. Desde então, estudantes pertencentes a famílias de baixa renda, com remuneração de até meio salário mínimo por pessoa ou renda familiar mensal de até três salários mínimos, adquiriram o direito de participar de um exame unificado e nacionalizado, no qual um bom desempenho garante o acesso para todas as instituições de educação superior públicas do Brasil desde 2013.

O prestígio do exame atingiu seu ápice em 2018, quando o Enem legitimou sua credibilidade construída ao longo de 20 anos com o menor índice de inscritos faltosos desde a reformulação da prova, em 2009: apenas 24,9% e 29,2% dos inscritos se ausentaram no primeiro e no segundo dia do exame, respectivamente. Isso significa que, em 2018, três a cada quatro inscritos participaram efetivamente do Enem, buscando uma vaga na universidade que lhes conceda, ao final da graduação, um salário três vezes maior do que quem tem apenas o ensino médio no currículo, segundo estimativa do Instituto Semesp.

Enquanto três em cada quatro jovens se inscreveram e participaram do Enem 2018 em busca de mobilidade social, um número de inscritos equivalente ao público de 37 Maracanãs, em média, desistiu de comparecer aos dois dias de aplicação do Enem 2020. É como se mais de 50% dos jogadores de ambos os times desistissem de participar de uma partida tão clássica quanto Corinthians e Palmeiras. Como jogadores que desistem de trabalhar em uma das etapas mais decisivas de suas carreiras, mais de 2.842.332 (51,5%) e 3.052.633 (55,33%) estudantes faltaram no primeiro e no segundo dias do Enem 2020, respectivamente. Em questão de apenas dois anos, o Enem que celebrava o menor índice de abstenção desde 2009 tornou-se uma prova com abstenção recorde, superior a 50% do total de inscritos.

Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro. Foto: Ricardo Stuckert/CBF.

Portanto, nos resta compreender quem são esses inscritos faltantes e porquê não compareceram ao exame nas datas pré-estabelecidas. A partir dos microdados do Enem 2020, é possível identificar quem são os 55% de estudantes faltantes no Enem em termos de renda, região do país, raça e formação básica em escola pública ou privada. No entanto, o único mecanismo capaz de mapear o perfil dos inscritos no Enem contabiliza quatro meses de atraso em sua divulgação, que deveria ter ocorrido em agosto de 2021, sete meses após a aplicação da prova. Segundo o INEP, os dados permanecem em sigilo devido a um processo de “readequação” de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados. Porém, a declaração do INEP omitiu uma informação crucial: os microdados do Enem sempre preservaram o anonimato dos estudantes e jamais nome e informações pessoais dos inscritos, o que dispensa o crivo da Lei Geral de Proteção de Dados antes de sua divulgação.

Sendo assim, por que os microdados do Enem 2020 permanecem em sigilo? Essa pergunta, infelizmente, ainda não tem uma resposta. Sendo assim, enquanto os dados oficiais não são divulgados, a única opção que nos resta é recorrer às estatísticas extra oficiais – as quais apresentam um cenário bastante preocupante por trás do recorde de abstenção no Enem 2020.

Segundo o Instituto Semesp, 2.780.947 inscritos com direito à isenção da taxa de inscrição faltaram no Enem 2020. Eles correspondem a 50,5% do total de inscritos no exame, que foram 5,5 milhões. Esses mesmos estudantes de baixa renda, com remuneração de até meio salário mínimo por pessoa ou renda familiar mensal de até três salários mínimos, alteraram drasticamente suas rotinas de estudo por conta da pandemia e do ensino remoto.

2.780.947 de inscritos

tiveram direito à isenção da taxa de inscrição no Enem em 2020.

De acordo com a pesquisa Tic Domicílios 2020, apenas 64% das famílias de classes D e E possuíam acesso domiciliar à internet, enquanto os lares de classes A e B registraram 100% e 99% de acesso, respectivamente. Enquanto 100% e 85% dos domicílios das classes A e B possuíam computadores em casa, apenas 50% e 13% das classes C e DE, respectivamente, possuíam ao menos uma unidade do dispositivo eletrônico mais adequado para acompanhar as aulas remotas. Portanto, as desigualdades no acesso à internet persistem: classes mais altas, com maior escolaridade e mais jovens ainda compõem a maioria dos usuários.

Nesse contexto, uma alternativa para os estudantes com menor renda foi recorrer aos computadores das próprias escolas para estudar. Para os estudantes que recorreram à infraestrutura das escolas, o principal problema não foi o acesso a equipamentos eletrônicos (como computadores e smartphones), e sim a falta de estabilidade da rede de internet e a precariedade da conexão. A pesquisa TIC Educação 2020 constatou que 78% das escolas públicas e 98% das particulares proporcionam acesso à internet para os estudantes. Embora a maioria das escolas públicas tenha a infraestrutura e os equipamentos necessários para que os estudantes acessem a internet, apenas 15% das escolas públicas possuem uma velocidade de conexão acima de 50 Mpbs, isto é, adequada para oferecer aulas online sem interrupções ou quedas de rede, segundo padrão internacional do Medidor SIMET. Em contrapartida, a proporção de escolas particulares com uma velocidade de conexão adequada é de 32%, correspondente ao dobro da taxa das escolas públicas.

Se o mapeamento das condições de acesso à internet já traz resultados desanimadores, a queda na qualidade de vida dos brasileiros durante a pandemia agrava esse cenário: segundo o Instituto Datafolha, 48% das famílias brasileiras com até dois salários mínimos mensais sofreram com a insegurança alimentar em 2020. Além da dificuldade de acesso à internet, a fome tornou-se outra desvantagem para que os estudantes de baixa renda permanecessem com uma rotina de estudos adequada para prestar o Enem 2020.

Chegada de estudantes para a prova do Enem. Foto: Agência Brasil.

Se o MEC ou o INEP dispõem de projeções mais animadoras para a educação brasileira, há muito findou-se a tolerância do tempo: faz-se necessário expô-las com urgência. A inércia do INEP na divulgação dos microdados do Enem 2020 há mais de quatro meses é, indubitavelmente, um indício da ausência de contra-argumentos válidos para rebater o pessimista cenário da educação brasileira no período pós pandemia.

Se não soubermos quem são os 55% de inscritos faltantes no Enem 2020, nos faltará clareza para manejar e direcionar políticas públicas eficazes para que os estudantes prejudicados tenham não apenas o direito de participar do Enem, mas também de competir em condições equiparáveis a de estudantes de escolas privadas. Enquanto o perfil dos estudantes mais necessitados do auxílio de políticas públicas permanecer imerso no limbo dos microdados não divulgados do Enem 2020, abre-se espaço para manobras legais em prol de interesses escusos, como a instrumentalização do Programa Universidade para Todos (PROUNI) a favor do lobby das universidades privadas, as quais buscam reduzir o número de vagas ociosas no PROUNI para aplacar suas cargas tributárias.

É preciso compreender que, nas entrelinhas da mais recente mudança nos critérios do Programa Universidade para Todos (PROUNI), a suposta inclusão de estudantes de colégios particulares sem bolsa de estudos subverte o objetivo inicial do programa, que consiste em auxiliar estudantes de baixa renda e que cursaram o ensino médio em escolas públicas a ingressarem na universidade. Embora essa medida diminua o número de vagas ociosas no PROUNI e atenda um novo grupo de beneficiários através do mesmo critério econômico, a admissão por renda familiar per capita até R$3.300 não aplaca as desvantagens significativas de aprendizado dos estudantes de escolas públicas em relação aos de escolas particulares, desconsiderando as dificuldades que as defasagens escolares previamente estabelecidas proporcionam no aprendizado e na permanência dos estudantes até o final da graduação.

Jair Bolsonaro. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

Além disso, a desburocratização do sistema de comprovação de renda para os candidatos ao PROUNI pode ampliar o risco de fraudes no programa: a partir da Medida Provisória do presidente Jair Bolsonaro, abre-se uma margem signficativa para que estudantes de escolas particulares tenham acesso ao PROUNI mesmo fora dos critérios econômicos do programa, pois lhes basta adulterar seus cadastros em bancos de dados do governo para pleitear as bolsas de estudo, em vez de apresentarem documentos comprobatórios de renda e de difícil falsificação.

Nesse sentido, a nova manobra do governo Bolsonaro na educação é mais um fruto do apagão de dados em que a sociedade brasileira se encontra. Sem a devida análise do perfil dos inscritos no Enem 2020, preencheram-se as vagas ociosas no PROUNI através da inclusão de estudantes de escolas particulares, e não a partir do investimento em bolsas permanentes, que ajudem os estudantes de escolas públicas e de baixa renda a custear não apenas a universidade, mas seus gastos com alimentação, transporte e moradia.

Em outras palavras, o caso do PROUNI nos mostra que o desconhecimento de dados oficiais convenientemente sigilosos, imersos na sutileza da burocracia e da omissão governamental, nos tornará cada vez mais reféns do aprofundamento de discrepâncias financeiras e sociais na educação. Nos resta refletir sobre nosso papel e contribuição, como sociedade civil, para o progresso da educação brasileira: concordância e omissão ou discordância e oposição.

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