Teoria não é ideologia: sobre as boas disputas em torno de gênero

Na última década, assistimos a um arrefecimento das chamadas políticas “antigênero”

1. Contra que(m) falamos?

Se há tantas ideias deturpadas no debate sobre gênero, um dos vários fatores responsáveis é a falta de informação descomplicada. A lacuna dá espaço para que não especialistas preconceituosos de plantão arroguem para si o véu da verdade em discursos violentos e excludentes.

Não à toa, sabemos o quanto as informações são intencionalmente mal colocadas. Não é simples ignorância. Ao contrário, faz parte da tentativa deliberada de manter as desigualdades. Apesar de a celebração do obscurantismo não ser exclusividade do contexto brasileiro, é impossível não notar a peculiaridade da dinâmica nacional no tocante às forças reativas a transformações sociais verificadas nos campos de gênero e sexualidade.

Na última década, assistimos a um arrefecimento das chamadas políticas “antigênero”, que adquiriram centralidade no projeto de reafirmação do estatuto de autoridade moral das instituições religiosas. É recente o lançamento da campanha governamental que intenta estimular a abstinência sexual da juventude, por exemplo, e é constante o recurso a pânicos morais como forma de promover a defesa de uma “família natural” e dos tradicionais papeis de gênero.

Cumpre-nos uma função importante, portanto, na condição de mulheres, pesquisadoras e ativistas: persistir na produção de conteúdos informativos que dialoguem com perspectivas científicas atuais – a exemplo das teorias feministas e de gênero -, diferentemente do apelo moralista dos setores conservadores.

É bem verdade que se sentar à mesa em igualdade de condições com homens não tem sido tarefa fácil. A conclusão também vale para as mesas dos prestigiados espaços acadêmicos. À ocasião dos primeiros tremores teóricos promovidos pelas feministas em universidades, em termos de inferiorizar as mulheres, os caminhos eram ainda mais vastos.

Carentes de autocrítica, os acadêmicos – como ainda o fazem – seguiam a se intitular como neutros em meados da última década. Sobravam argumentos médicos – especialmente da ciência psiquiátrica – e jurídicos para se desdobrarem os lugares masculino e feminino no mundo. E os delas, sempre mais limitados.

2. Sobre o que falamos?

As teóricas feministas passam a disputar as narrativas científicas hegemônicas de modo cada vez mais competitivo a partir da década de 1970. Ao final das contas, o passivo – uma palavra que, aliás, costuma se relacionar ao feminino – parecia mais suportado por elas, e havia um crescente e incendiário interesse em se contextualizar o porquê da hierarquia.

As autoras têm se movimentado em torno desta fogueira de forma mutante e sofisticada. A origem, as soluções, a diversidade dos efeitos discriminatórios sobre a vida das mulheres, e as próprias armadilhas contidas neste questionamento são apenas alguns dos exemplos dos entraves até aqui empreendidos.

Neste sentido, Sherry Ortner, que produziu um icônico texto feminista em 1974, golpeou o conhecimento hegemônico ao explorar a hipótese de que as mulheres encontravam-se universalmente subjugadas. Este pode ser um embasamento possível para costurar termos bastante evocados, ainda hoje, por coletivos de mulheres, como a ideia de patriarcado ou de sororidade feminina.

Já para algumas das feministas que ocuparam o circuito da escrita acadêmica na década seguinte, reduzir as experiências de todas as mulheres a uma única etiqueta não se mostrou resposta suficiente. Negras e proletárias, ilustrativamente, corporificam vivências distintas de brancas acadêmicas com amplo acesso patrimonial.

Raça e classe social, portanto, oferecem nuances que seguem em disputa nestes diálogos críticos. Angela Davis e bell hooks, norte-americanas, e Djamila Ribeiro, brasileira, em constante produção e atuação nos movimentos sociais e teóricos feministas, são vozes conhecidas. E os atravessamentos provocados por opressões variadas não se limitam a estes marcadores. A denúncia à matriz heterossexual compulsória, como realizou magistralmente, da França, ainda nos anos 1980, Monique Wittig, ou à lógica colonizadora, a exemplo da indiana Chandra Mohany, ilustram uma sequência de intersecções múltiplas que resulta em um rico balanço da aproximação e de afastamento dos sentidos de gênero para as tantas mulheres em diálogo.

Djamila Ribeiro

Gênero, aliás, contemporaneamente, tem sido um significante em disputa nas próprias teorias feministas. Judith Butler, desde os anos 1990, debruça-se em esgarçar o termo, confrontando uma conhecida conclusão sobre a divisão entre sexo – comumente tido como relacionado a dados biológicos – e gênero – comumente tido como relacionado à construção social que parte da leitura de nossos corpos como femininos ou masculinos. A crítica ao binarismo, que se configura pela divisão do universo em dois polos, alcança um nível de alta voltagem nesta autora e em todas aquelas que se identificam como pós-estruturalistas.

Não fosse trágica, seria cômica a associação reducionista feita, no Brasil, há alguns anos, entre Judith Butler e o que se convencionou chamar em reacionárias ruas de “marxismo cultural”, à ocasião dos protestos que circundaram as palestras que ela por aqui proferiu. Isso porque no campo teórico, é conhecida a dissonância entre a norte-americana, mais sintonizada aos escritos foucaultianos, e o pensamento marxista. Apesar disso, outras teóricas feministas, sim, escrevem a partir desta última vertente, como a brasileira Heleieth Saffioti, falecida em 2010, e que encontra leitoras para além de nossas fronteiras.

As particularidades nacionais frente aos influxos teóricos estrangeiros se explicam, em partes, pela complexidade das décadas de 1970 e 1980 ao longo da América Latina. Perseguidas e torturadas durante a ditadura militar, as feministas brasileiras não estavam às voltas com o desenvolvimento acadêmico dos sentidos para “gênero” como as colegas estadunidenses. A tensão pela democracia, a repressão sofrida dentro e fora dos movimentos sindical e rural, e a influência do exílio indicam pistas para os específicos contornos inicialmente traçados por elas no ambiente universitário. Atualmente, as lutas camponesas e indígenas também oxigenam as pátrias narrativas feministas e expõem o impossível divórcio entre movimentos sociais e teóricos para os nossos propósitos.

Em tempos de descredenciamento dos pensamentos feministas, reduzidos à pecha de “ideologia de gênero” por grupos profundamente comprometidos com horizontes mais injustos e opressivos, a primeira lição a persistir é a da extensão de caminhos trilhados por estas teóricas e da complexidade dos olhares disponíveis sobre um leque de temáticas que sintonizam vozes nos mais variados campos de pesquisa. E a última lição, talvez, seja que dentro desta vertente minoritária representada por mulheres feministas produzindo em universidades, há inúmeras dissonâncias que se entravam de modo construtivo, em uma importante conclusão sobre como deve se dar a condução das discordâncias de ideias em um convívio democrático.

3. Trans e intersex em compreensão mais complexa do que querem os reacionários

Este convívio, para além da disputa saudável no campo científico, deve abarcar as diversidades sexual e de gênero que põem em xeque o binarismo de cunho biologicista que comumente é acionado por grupos conservadores para manter o que se entende hegemonicamente enquanto “homem” e “mulher”.

Corporalidades que desafiam a tradicional definição a partir da genitália provocam, assim, um questionamento à concepção rígida a respeito dos gêneros e dos sexos. Como já disse Anne Fausto-Sterling, nossos corpos são complexos demais para dar respostas claras sobre a diferença sexual e as experiências diversas revelam justamente um contraponto à concepção de que o corpo reflete, em essência, um sexo estático, natural e a-histórico.

Isso quer dizer que a já bastante difundida noção de que o “sexo está para a natureza, assim como o gênero está para a cultura” –  ou, em outras palavras, que o gênero é uma apreensão de significados culturais sobre diferenças sexuais biologicamente dadas – pode ser insuficiente. Retomando a referência a Judith Butler, o sexo não pode ser tomado como um simples fato notório ou condição estática do corpo: tanto o sexo como o gênero são primordialmente apreendidos por saberes e conhecimentos a respeito dos corpos, como já diria Joan Scott, e ambos são conceitos históricos que sofrem contingências do tempo e do espaço.

Os estudos de gênero e as múltiplas identidades e subjetividades podem, assim, abrir caminhos para se pensar a maneira como se operam os discursos e práticas político-institucionais acerca dos gêneros e dos sexos a partir do marco da diversidade e de sua historicização. Ainda que não ignoremos a fisiologia dos corpos, é possível se aferir na concretude da vida uma multiplicidade sexual e de gênero não tematizada devidamente.

Mesmo na literatura médica, a categoria “sexo biológico”, posta em perspectiva dualística (feminino ou masculino) e naturalizada, já não contenta. De acordo com Sterling, bióloga que citamos anteriormente, existe uma ampla configuração cromossômica quanto ao funcionamento de nossos corpos, ligada à nossa conformação hormonal e gonadal, que é apagada pelo ferrenho comprometimento da cultura ocidental de continuar corroborando a existência de apenas dois sexos.

No Brasil, por exemplo, o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 1.664/2003, promove o gerenciamento biomédico da intersexualidade (termo utilizado para descrever a condição de pessoas que nascem com características sexuais biológicas que não se encaixam nas categorias típicas do sexo feminino ou masculino),  afirmando que “o nascimento de crianças com sexo indeterminado é uma urgência biológica e social”. Lutas ainda são travadas para abolir intervenções “corretoras” (cirúrgicas e/ou hormonais) realizadas nos indivíduos diagnosticados como intersexo, procedimentos estes que buscam, a qualquer custo, garantir a estabilidade das dicotomias de sexo e gênero.

Seguindo esta perspectiva binária, entende-se que corpos considerados “normais” devem apresentar uma “coerência psicológica” em termos de seus pertencimentos a uma ou outra categoria de “sexo biológico”, e que tal coerência deve se manifestar em expressões vistas como “adequadas” para cada corpo de maneira consistente. Mas quando se afirma a existência de homens ou mulheres “biológicos(as)”, esquece-se que o gênero só ganha significado na experiência cotidiana, em nossas relações sociais. Há uma interpretação, em termos do que é masculino ou feminino, de como nos vestimos, de como escolhemos cores, acessórios, dos nossos modos de andar, dos nossos trejeitos pessoais, dentre tantos outros aspectos.

Manifestação realizada na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, lembra as vítimas da transfobia no Brasil. Crédito da foto: Tomaz Silva / Agência Brasil.

Por isso, ao anunciar a sua travestilidade – que enquanto transgressão à compreensão binária dos gêneros, insere-se no campo das transgeneridades – Linn da Quebrada, em uma de suas tantas célebres canções, afirma que sua identidade nada tem a ver com o genital. Felizmente, em 2018, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela possibilidade de pessoas trans alterarem o registro civil diretamente pela via cartorária, sem a necessidade de apresentação de laudos médicos e/ou confirmação de cirurgias transgenitalizadoras, em um julgamento conhecido por respaldar juridicamente o direito à livre expressão e à identidade de gênero.

Porém, em uma ordem social cisnormativa – que condensa uma expectativa social segundo a qual pessoas designadas do sexo masculino no nascimento serão necessariamente homens, ao passo que aquelas designadas do sexo feminino, sempre mulheres –, pessoas trans e intersexo enfrentam inúmeros desafios cotidianos, que vão desde a possibilidade de usar banheiros em conformidade com a sua identidade de gênero até participar de competições esportivas de alto rendimento sem que suas performances sejam caracterizadas como descomunalmente mais vantajosas.

No primeiro caso, é comum que opositores, em sua faceta mais preconceituosa, lancem mão do argumento de que há pessoas (notadamente mulheres cisgêneras) que poderiam se sentir constrangidas e vulneráveis psicologicamente pela presença de mulheres trans em banheiros femininos. Carregam, ainda, uma pretensa preocupação com possíveis estupradores e pedófilos que poderiam adentrar os banheiros femininos.

No entanto, esquecem-se de que os banheiros de uso público estão longe de ser os lugares mais propensos a viabilizar a violência em face de mulheres. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, em 2016, tramitaram na Justiça mais de um milhão de processos referentes à violência doméstica, o que corresponde, em média, a 1 processo para cada 100 mulheres brasileiras; desses, pelo menos 13,5 mil são casos de feminicídio. É, portanto, na figura de um homem familiar – que, não raro, mora sob o mesmo teto – que mulheres possuem um potencial algoz.

A justificativa tampouco parece levar em conta a bastante conhecida cifra dos movimentos sociais de pessoas trans, que indica que o Brasil é um dos líderes mundiais no assassinato deste grupo socialmente vulnerado.

Quanto à questão desportiva, sabe-se que o Comitê Olímpico Internacional passou, desde 2015, a permitir que mulheres trans compitam em categorias femininas, desde que sua taxa hormonal de testosterona se enquadre no limite de 10 nmol/litro, que devem se manter estável nos 12 meses anteriores à medição, não havendo qualquer tipo de restrição à participação de homens trans nas categorias masculinas. Mas a reação conservadora aos casos de Edinanci Silva, Caster Semenya (ambas com variações intersexo) e Tiffany Abreu (mulher trans) parece evidenciar muito mais do que uma preocupação com a proteção às categorias femininas ou com a manutenção do fair-play esportivo.

Valendo-nos de reflexões de Bárbara Pires, antropóloga do esporte, vê-se que as atualmente conhecidas políticas de verificação de gênero (que remontam principalmente aos “certificados de feminilidade”, assentados nos anos 1960) evocam constantemente uma forma de governança corporal: um corpo que precisa ser amplamente escrutinizado para fazer parte do evento esportivo e que, não à toa, deve ser intrinsicamente ligado às ideias culturais hegemônicas (e não somente científicas) de como um corpo feminino deve ser.

De todo modo, é importante compreender que o “sexo biológico” é uma terminologia que, a partir de um discurso científico hegemônico, exprime a diferenciação criada entre “machos” e “fêmeas” na natureza. Essa reprodução biológica associada ao pênis e à vagina admite que há somente uma natureza dos corpos humanos e uma natureza sempre heterossexual. 

E é claro que, como visto, essa visão de mundo exclui uma série de outros corpos, torna abjetas e marginaliza identidades e orientações sexuais outras que não exatamente se enquadram à norma. E é aí que mora o gravíssimo problema: a raiz excludente e discriminatória do argumento de que há uma natureza “correta” no campo da sexualidade. O debate crítico sobre gênero não tem nada de destrutivo, portanto. Tem, sim, uma função questionadora dos papéis dos homens e das mulheres, da normalização e da patologização de determinados corpos e sexualidades. E esse questionamento é libertador, abre caminhos para a garantia de direitos e extingue violências. Qualquer informação diferente desta e que arrogantemente se coloque como verdade não passa de falácia – ou, para se aproveitar das palavras dos próprios não-especialistas preconceituosos, de mera ideologia antigênero.

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