R.

R. é alta, magra. Seus passos leves, se não fraquejam, evitam qualquer alarde. Parece um ser alado que prefere andar. Coloca-se ao nível do chão, embora, talvez, pudesse viver sozinha nas alturas.

Sim, R. escolheu viver rente à realidade. Não alimenta ilusões de completude ou grandeza nem dramatiza pensamentos ruins. É reservada, clara. Quando lhe dirigem a palavra, ajeita os óculos redondos de John Lennon e encara a pessoa de frente. Olha atentamente, com um ligeiro ar de cansaço, como se o interlocutor merecesse respeito mas não lhe pudesse trazer grandes novidades. Quando é surpreendida, arregala um pouco os olhos, dá uma tragada no cigarro. Então bate as cinzas no cinzeiro e rumina algo sobre a novidade, algo que guarda em silêncio.

A mente de R. é agradável como sua casa, não há muita bagunça nem excesso de zelo. As coisas estão ali para dar-lhe conforto na medida do possível, sem ostentação, e são bonitas pelo desapego que revelam. Posso entrar no quarto de sua mente, jogar as roupas no chão e acender um cigarro, deitado, nu, ouvindo-a falar sobre sua agradável infância solitária ou sobre o ódio e o medo que fizeram o Parlamento Europeu desprezar a vida dos refugiados.

Eu gosto de imaginar o que vai pela cabeça desta mulher, mas não lhe digo nada. Gosto de vê-la pensar, gosto de vê-la exalar a fumaça e dizer algo preciso, despretensiosamente. Se me exalto, se devaneio, se fico down, ela recebe tudo da mesma forma desassombrada, com um olhar amoroso que me permite sair da posição fetal. A coisa é simples, me diz esse olhar, a vida nos traz poucas alegrias e muitos dissabores, não adianta se debater. Mas tudo pode ficar melhor se entendermos isso, serenos, estoicos.

Fui com R. a um bar e uma desconhecida sentou-se à nossa mesa. Vinha de um halloween. Usava uma máscara branca sobre os olhos, meias e vestido pretos. Em poucos minutos soubemos que era natural de Viana do Castelo, no Alto Minho, que era poeta e que tratava os garçons como se fossem tolos. Falava alto, com o carregado sotaque português do norte. Martelava seus pontos de vista sobre poesia e política como um saloio que discute a superioridade de alguma raça de porcos. Acreditava que os pobres de Portugal eram essencialmente iguais aos pobres do Brasil, não havia quem a convencesse da profundidade paralisante da nossa miséria. Conversava mais comigo, porque R., cansada de papos inúteis, sem ecos, só falava quando lhe apetecia. Quando fomos embora, os dois pra lá de Marrakesh, R. enlaçou minha cintura, beijou meu pescoço e disse:

– Não sei porque insistimos em conhecer pessoas.

Mais tarde, no quarto, R. deitou a cabeça em meus joelhos. Fumou um cigarro de olhos fechados. Algo nela não queria dormir. Talvez o prazer de uma espécie de meia-consciência, a mente no limbo, o fade-out dos sentidos.

Acariciei seus cabelos e pensei no Brasil, tão longe e tão pungente. O governo estúpido enganando os imbecis com seu patriotismo delusório. O povo sofrido, abandonado, um imenso rebanho conduzido por pastores perversos. Minha cidade, meus filhos, a palavra “saudade” dita pelo mais novo no facetime. Uma ruazinha coberta pela copa das árvores, um mendigo que tocava violão. O grande amigo com quem caminhei por trinta anos e que sumiu de repente, levado pelo câncer.

R. submergiu do entressono, meio rouca:

– Desculpa por estar calada. Tudo que eu possa dizer parece-me medíocre. Está distante de tudo que eu sinto ou o que eu penso.

Passou os dedos pela minha canela. Mas em vez de calar-se, acendeu outro cigarro e me falou dos velhos restaurantes da capital, quase extintos pela gentrificação.

– Vias a cozinheira muito gorda e gordurosa na cozinha, os bêbados de estimação no balcão. Sentias o cheiro do tempo neles…

Antes de adormecer, concluiu:

– Essa decadência boa em Lisboa perdeu-se.

Atravessei o oceano para conhecer outro país, cansado do meu. Queria aproveitar os anos que ainda tenho para viver entre pessoas que se respeitam, num outro padrão ético, pouco me importando se a sua tranquilidade foi conquistada por pilhagens marítimas.     

Embora às vezes me sinta num auto-exílio, as coisas se deram mais ou menos como imaginei. Mas a verdade é que não vivo exatamente em outro país. Moro num apartamento qualquer e fico em casa escrevendo. Quase só vou à rua para comprar comida ou sacar dinheiro, o que faço sempre nos mesmos lugares.  

Acho que vim tão longe para finalmente morar em mim. Fora alguns velhos fumos de amargura, é um bom lugar. Os dias passam numa relativa paz. E quando anoitece, R. chega, como um pássaro que prefere andar. Às vezes me convida para ir a sua casa, no outro lado do Tejo.

– Sempre cruzamos o rio?

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