Lia – Capítulo 42

Em florestas cerradas, as árvores vivem em permanente competição pela luz do sol. Quando várias da mesma espécie estão crescendo muito próximas umas das outras, por exemplo, aquela que por qualquer motivo se desenvolve mais rápido e fica, digamos, um metro mais alta que as irmãs, logo determina o fim das outras, por abrir sua copa para o sol e projetar sombra num raio cada vez maior à sua volta.

Na medida em que cresce, ela tem a chance de ultrapassar o dossel florestal, as copas de todas as outras árvores, e se estabelecer, frondosa, no ponto mais alto, onde todo o sol de que precisa está à disposição das suas folhas que se distribuem da maneira mais eficiente para garantir que, de um lado, nenhuma fique numa posição em que não apanhe luz suficiente para a fotossíntese (essa localização redunda na morte da folha, na segmentação do pecíolo, na queda da folha lá do alto, seca, sozinha…) e, de outro, que toda a luz que passe pela copa seja de fato aproveitada: por isso árvores projetam uma sombra tão sólida; suas folhas se encaixam num sistema tridimensional perfeito que gera a cobertura total do arco da luz solar durante o dia. Máximo aproveitamento.

Essa eficiência, claro, é também a condenação de outras árvores desse tipo em todo o raio determinado pela sombra da gigante. Não há luz suficiente.
Isso não impede que outro tipo de vegetação, melhor adaptado ao ambiente mais úmido e escuro, preparado para extrair seus nutrientes da matéria em decomposição no solo da floresta, por exemplo, acabe se desenvolvendo em abundância nesse mundo sem sol. Não impede também que outras plantas se instalem no próprio tronco e nos ramos da árvore gigante, escalando seu corpo para se aproveitar da luz que lá no alto está à espera. Algumas dessas plantas convivem bem com seu pouso; usam apenas a plataforma. Outros tipos no entanto parasitam a árvore, furando a casca e roubando seus nutrientes, ou mesmo estrangulando seu desenvolvimento em nós cada vez mais apertados.

Não é raro que o vegetal mais alto de uma floresta seja um cipó parasita, pequeno em comparação, que se esgueirou pelo tronco de uma árvore imponente.

Isolada dos membros de sua espécie, que ficam espalhados a alguma distância uns dos outros, essa árvore alta cria sua zona de privação, cria sua própria flora e sua fauna circunstantes. Priva e gera. Uma exceção à regra, no entanto, e uma exceção muito curiosa, são as novas árvores que nascem das sementes que a própria gigante derruba e que, vez por outra, é claro, de fato não caem longe do pé. Há pouco tempo se descobriu que as árvores “mães” tem uma curiosa tendência a manter algumas dessas suas descendentes num estado de permanente estase de desenvolvimento, sendo sustentadas diretamente pelos nutrientes que ela mesma extrai e processa, e que são transportados para essas descendentes em “suspensão” por uma extensa rede micorrizomática: fungos que se associam às raízes das árvores. Elas ficam ali, pequenas, sem poder crescer mas impedidas de morrer. E apenas as árvores derivadas daquela “matriz” recebem esse tratamento de exceção. Elas se reconhecem.

Esta castanheira tem séculos de idade. Mais de cinquenta metros de altura.
Gerações de suas descendentes não suportaram a espera e minguaram. Viraram matéria vegetal a ser absorvida. Gerações inteiras enquanto ela se mantinha elevada, acima do teto do mundo, vertical e imponente.

Nações nasceram, morreram. E ela crescia.

Quatro metros de diâmetro do tronco.

E no dia em que morrer, atingida por um relâmpago, derrubada por uma tempestade que seu tronco fragilizado não puder mais suportar, sua queda estrondosa (alguém vai ouvir?) vai derrubar muitas árvores menores e rasgar uma clareira imensa no dossel. Com isso o sol vai chegar pela primeira vez em talvez meio milênio àqueles metros do solo da mata.

E uma das suas descendentes vai começar a crescer mais que as outras.

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