Eu não tenho medo do Mein Kampf

O clamor pela censura se justifica apenas quando os fins são nefastos

Em 2016, expiraram-se os direitos autorais de Mein Kampf, o livro de dois volumes de autoria de Adolf Hitler, escritos em meados da década de 1920. Ao contrário do que se acredita, a circulação do Mein Kampf não estava proibida na Alemanha até o início daquele ano, como acontece com símbolos nazistas. Na verdade, os direitos pertenciam ao estado da Baviera, que sempre se recusou a republicá-lo. O governo defendia que, excepcionalmente, os direitos não caíssem em domínio público, pois temiam uma onda de edições que poderia provocar um crescimento de grupos nacionalistas de extrema-direita com ideias neonazistas.

Com os direitos expirados, editoras em todo o mundo anunciaram a publicação de versões comentadas – numa delas, com 3.700 notas de rodapé. Em Munique, berço de tudo, uma equipe de pesquisadores preparou, durante três anos, comentários históricos para contextualizar e dissecar o discurso de ódio. Uma leitura crítica e essencialmente pedagógica, com o intuito de desmistificar o texto original.

Iniciativas similares voltaram a ocorrer em 2021 – caso da editora francesa Fayard, que lançou uma edição chamada Historicizar o Mal, a Edição Crítica de Mein Kampf. A editora inclusive afirmou que a Fundação Auschwitz-Birkenau, encarregada de preservar a memória do célebre complexo de extermínio, receberá parte dos direitos autorais. O livro possui cerca de mil páginas, sendo um terço com o texto original e o restante dedicado às análises de uma equipe liderada pelo renomado historiador Florent Brayard.

Porém, há quem defenda que nenhum benefício educativo poderia compensar o mal absoluto que este escrito, apelidado de “obra maldita”, sempre fez. No Brasil, advogados e grupos políticos bradam em voz alta, com apoio do Ministério Público e de órgãos de classe. A publicação é proibida em razão da decisão final do STF, após o “Caso Castan”, em 2004, baseada no artigo 20 da Lei 7.716/89, que estabelece pena de reclusão para quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Em Israel

A controvérsia sobre a publicação (ou não), obviamente, chegou a Israel — muito antes, mas hoje sem tanto alarde. No fim dos anos 1980, o sobrevivente do Holocausto Dan Yaron encabeçou uma campanha que culminou com a elaboração de uma versão encurtada e comentada em hebraico, utilizada nas universidades israelenses. Yaron, que morreu em 1999, lutou para que o livro, proibido até então, fosse publicado em hebraico para fins educativos, o que foi realizado pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Uma vitória da educação, que proporcionou grandes avanços nas pesquisas históricas.

O professor israelense Meir Litvak, da Universidade de Tel-Aviv, destacou que “há uma rejeição emocional compreensível” pelo livro e que nenhuma editora israelense o publicaria seco, sem comentários. Atualmente, o professor Dan Michman, chefe do departamento de pesquisa do Yad Vashem, o museu do Holocausto de Jerusalém, trabalha numa versão comentada com 3.500 notas explicativas. Para ele, é positivo publicá-lo num contexto mais amplo: “serão incluídas uma série de questões em torno do texto — onde, quando e como as ideias de Hitler foram traduzidas em ações”.

O próprio Yad Vashem já publica, há anos, trechos comentados da obra, tanto em seu site quanto em estudos históricos de nomes fortíssimos como Yehuda Bauer (ainda vivo), David Bankier, Israel Gutman, Yitzhak Arad e Avraham Margaliot. Ao contrário do Brasil, não existe em Israel uma campanha para proibi-lo em qualquer situação. Pelo contrário.

Documento histórico

Mein Kampf não pode ser visto apenas como um texto racista, preconceituoso e repleto de ideias antissemitas e ultranacionalistas, que — sem dúvidas — é, definitivamente. Também não é apenas um veículo de propaganda. Apesar de tudo isso, ele é um documento histórico fundamental para as novas gerações. Fala-se tanto em “lembrar”, “não esquecer”, “Holocausto nunca mais”… e isso só será possível se realmente lembrarmos. O livro pode ser uma ferramenta eficiente de lidar com o nazismo de forma racional (e não sentimental), de educar e de mostrar o quão absurdas eram essas ideias. Ele precisa ser lido, estudado e comentado de forma séria e por meio de uma metodologia responsável. Assim se educa.

O clamor pela censura se justifica apenas quando os fins são nefastos, casos de editoras notoriamente controversas, ou por uma visão limitada da História que se resume ao rancor, ao medo infundado ou ao ódio. E não se cura ódio com ódio, e sim com educação, com ciência e com transmissão de lições éticas. Defender a proibição pode ser, muitas vezes, uma jogada política equivocada. O fim dos direitos autorais de Mein Kampf é uma oportunidade para que esse texto seja difundido legalmente, estudado, compreendido e usado na luta contra o racismo e o antissemitismo. O historiador Nélson Jahr Garcia disse que Mein Kampf foi a melhor obra já escrita contra o próprio Nazismo: “quanto mais se conhecer, maior se tornará o repúdio e aversão”.

Eu não tenho medo do Mein Kampf, e explico abaixo

1) A obra, em pleno século XXI, só é capaz de convencer àqueles predispostos. Mesmo assim, os neonazistas encontram poucos elementos nessas páginas prolixas com os quais se identificam. Como destacaram os jornalistas Ricardo de Querol e Luis Doncel: “tirando seu evidente valor como documento histórico, Minha Luta, hoje em dia, é apenas um plúmbeo e reiterativo ensaio repleto de argumentos pseudocientíficos e pseudohistóricos que não resistem a uma análise séria”. Para o historiador Marc Buggeln, professor na Universidade Humboldt e especialista no tema, “a obra de Hitler triunfou porque oferecia respostas fáceis aos problemas dos princípios do século XX. Mas elas não funcionam para o mundo atual”.

2) O livro pode ser encontrado, sem dificuldades, em edições antigas ou na internet, em qualquer idioma. Rapidamente. De acordo com o historiador francês Claude Quetel, “proibir um livro não faria sentido porque os fãs sempre poderão arranjar meios para obtê-lo”. Por isso, historiadores concordam que a estratégia de silenciá-lo não faz sentido. O escritor e historiador britânico Antony Beevor, uma referência acadêmica, destacou: “a tentativa de ocultá-lo, seja através do tabu social ou da legislação, só serve para aumentar o atrativo do proibido. Os neonazistas e os jihadistas poderão citá-lo, mas essa é uma razão a mais para dispor de exemplares que demonstrem a desonestidade intelectual e as falácias que impregnam cada página”. Apesar do desconforto óbvio, os benefícios são infinitamente maiores do que qualquer prejuízo ou medo. O saudoso ativista comunitário judaico mineiro Marx Golgher, há muitos anos, já defendia: “aproveite a internet e leia. Entenda sua retórica. Perceba por que ele fascina os racistas. Entenda por que é preciso se defender deste texto”.

3) Agrada-me a ideia de versões comentadas. Porém, não é possível exigir que qualquer obra a seja obrigatoriamente. Notas explicativas são extremamente importantes, mas este é um precedente perigoso. O Novo Testamento, por exemplo, interpreta a morte de Jesus (como no Evangelho de Mateus) como um crime cometido pelos judeus, um deicídio — mito difundido popularmente até hoje. Em nome dele, milhões foram mortos em séculos. Não podemos obrigar que se publique o Novo Testamento apenas com comentários. Ou a obra antissemita de Martinho Lutero. Como uma legislação lidaria com isso? Alguns historiadores poderiam comentar e outros não? É uma questão complicada e delicada que eu não saberia responder.

4) Inúmeros documentos e discursos (sejam de Hitler ou de outros membros do alto escalão nazista, como Himmler, Göring e Goebbels), até mais veementes e incitadores da discriminação, da violência e do extermínio do povo judeu, são publicados livremente e usados como fonte de pesquisa e estudo em todo o mundo. E não são polemizados. Mein Kampf seria apenas por seu simbolismo? Afinal, na Alemanha nazista, era comum presentear o livro a bebês, a noivos e a recém-formados.

5) Muitos condenam a publicação em razão do lucro. Esbravejam que Mein Kampf não pode ser fonte de lucro para nenhum editor. O argumento é problemático, sem entrar no mérito dos que se propõem a doar seus lucros. Há muito tempo a sociedade transformou ideias em mercadorias. Além disso, destaca-se novamente o problema que uma legislação enfrentaria — no caso brasileiro, conflitante à própria Constituição.

6) Sobreviventes do Holocausto sentem-se atacados e insultados com a publicação. Este sim é um argumento plausível. Existe um respeito incomensurável por cada vítima, que sofreu o que não podemos imaginar. No entanto, esta alegação sentimental e emotiva serve de legitimação para a estratégia equivocada de censura. Apesar de toda a reverência e estima pelas lembranças traumáticas individuais, a construção de uma memória coletiva universal do Holocausto pressupõe a transformação desses traumas em lições, de comoção em consciência histórica, de dor em transformação social.

7) Para que a memória do Holocausto faça sentido nos dias de hoje, a tragédia precisa ser decodificada e encarada como um alerta ou como um precedente. Para deixar de ser um precedente, suas lições devem ser compreendidas e incorporadas pelas próximas gerações. Para isso, as fontes históricas precisam ser disponibilizadas. Caso contrário, o discurso do “Nunca mais” torna-se vazio, causado pela dificuldade de compreensão do contexto, do processo do genocídio e das causas que levaram ao extermínio de milhões de pessoas.

Eu não tenho medo do Mein Kampf.

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