Memória

E então só me sobravam o desespero e as lágrimas: ao perder a minha história, perdi a mim mesma

Planta. Circo. Mãe. Cadeado. Cadeira. Lua. Guarda-sol. Bexiga. Travesseiro. Roubo. Cortesia. Pedra. Ramalhete. Medo. Olho. Mesa. Bexiga. Hortênsia. Oito. Praia. Branco.

Vinte e uma palavras eram-me ditas no começo da sessão de neuropsicologia. Eu as repetia assim que as ouvia, mais tarde (no meio da sessão) e pela última vez antes de ela terminar. As palavras eram numerosas e desconexas de propósito, para forçar o meu cérebro a memorizá-las sem relacioná-las a um contexto lógico. Este era um dos exercícios que fazia para recuperar a memória em um consultório especializado. Tive muito problema com as minhas memórias, ao ponto de acordar todos os dias e chorar de desespero por ter esquecido o meu próprio nome.

Todo ser humano gostaria de esquecer algumas ações e momentos da vida. Errar é humano e dói, bem como é humano fingir para si mesmo que tal coisa não aconteceu e querer resetar o cérebro. Só que, infelizmente, as coisas não funcionam bem assim na prática. No meu caso, pelo menos, não foi assim que aconteceu. Eu me sentia perdida no meio de um monte de informação inútil e, de repente, num susto, vinha à minha mente a imagem de uma mão batendo em um tabuleiro de peças de Banco Imobiliário. Era um pesadelo. Esta imagem aparecia em momentos que considerava importantes, sem fazer nexo algum com eles.

Estar desmemoriada me tornou inocente e vulnerável. Naquele tempo, acreditava em absolutamente tudo o que me dissessem. Lembro de um amigo do trabalho trollar comigo ao me dizer que eu tinha deixado o meu carro no estacionamento da empresa e eu ficar dias me perguntando onde eu tinha deixado o meu veículo, sendo que nunca tive um. Não só esqueci das coisas que não tinha, mas também de brigas e mágoas com quem eu amava. Acho que meu cérebro apagou tudo o que me havia feito sofrer durante as cirurgias para que eu resgatasse o meu amor pela vida, e funcionou. Quando voltei, via tudo “cor-de-rosa”, o que me causou muitas frustrações depois, já que nenhuma vida é La vie em rose.

Entre o meu primeiro e segundo AVC, a psicóloga da UTI me fez algumas perguntas, como: idade (22 anos), profissão (estudante) e se tinha namorado (talvez). As respostas foram rápidas e lógicas, exceto por um grande detalhe: elas estavam erradas. Eu tinha 34 anos, era designer instrucional e estava divorciada. Só que há exatamente doze anos, todas essas respostas estariam certas. Numa “desmiolice” muito grande, eu “voltei no tempo” para reviver o meu primeiro ano da faculdade de Letras (2003). Tudo o que aconteceu naquele tempo estava intacto, porém, até os meus trinta e quatro anos (2019), todo o percurso era confuso e com vários “apagões”. E então só me sobravam o desespero e as lágrimas: ao perder a minha história, perdi a mim mesma. Depois do AVC, a minha identidade tinha ido para o ralo.

O segundo derrame ainda me tirou a percepção da língua portuguesa e trouxe à tona uma mistura das cinco línguas que estudei durante a minha vida inteira, com ênfase no francês. Até hoje, tenho que pensar para falar e escrever na “língua de vocês”, mas tudo se tornou menos difícil depois do tratamento neuropsicológico, onde descobri os gatilhos que fazem a tecla SAP do meu cérebro mudar o idioma.

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Hoje sei que a minha lesão neurológica abalou diretamente a minha memória recente, mas percebi que muitos sobreviventes possuem déficits de memória por causa do trauma emocional de todo o processo. Ter um derrame é perder o controle de si, de seu corpo, de sua família e de seus sonhos em menos de um segundo. É um baque muito pesado para apenas um ser humano, e exatamente por isso o cuidado psicológico é tão necessário pós-AVC. É no nosso emocional que está a base de tudo.

O mais estranho da época em que fiquei sem memória é que incrivelmente ainda mantinha as sensações. Eu tinha uma “intuição” de que tinha brigado com tal pessoa, de que tinha amado outra. Mas, na lógica, eu não sabia se aquilo era verdade ou coisa da minha cabeça, a não ser que a pessoa me dissesse com todas as letras. Então, no começo da minha socialização, eu estava totalmente sem filtro e perguntava na lata: “A gente já teve alguma coisa?”, “Está tudo bem entre nós?”. E poucos me respondiam prontamente, talvez pelo medo de iniciar alguma discussão. Mas quando sentia que a resposta estava errada, me vinha à mente aquela velha imagem da uma mão batendo em um tabuleiro de peças de tabuleiro e as casinhas indo pelos ares. Mas o que essa memória queria me dizer? Que o diabo mora nos detalhes.

A cada conversa com alguém, me vinha uma memória de um detalhe da nossa possível convivência. A imagem vinha do nada, então eu interrompia a pessoa e perguntava: “Isso aqui aconteceu ou é um delírio?”. E foi assim que, entrevistando os outros, fui encaixando as peças do quebra-cabeça da minha própria vida. Até hoje imagino como deve ter sido estranho responder às perguntas excêntricas de uma mulher recém-operada do cérebro, mas muita gente colaborou e me ajudou muito. Obrigada, people.

Porém, a vida da gente não é formada apenas pela percepção do outro. Cada um tem a sua a respeito de tudo que o cerca, e eu também tinha o meu ponto de vista das paradas. Apesar de ser tagarela e extrovertida, sempre fui muito reservada. Sei disso porque ainda tenho muitos apagões da minha vida até agora, assim como flashes que, aos poucos, vão me fazendo algum sentido. Como por exemplo, a imagem do tabuleiro indo pelos ares, que realmente aconteceu. Foi em uma tarde de frio na casa de uma amiga da faculdade. Eu, ela e um amigo dela estávamos jogando Banco Imobiliário, e pela primeira vez na vida em que estava ganhando aquele jogo capitalista e hostil, o garoto (que estava perdendo) bateu no tabuleiro com força para acabar com tudo aquilo de uma vez. Eu devo ter me sentido muito frustrada porque essa imagem me vem intuitivamente à cabeça quando acho que estou sendo enganada.

Outra coisa que percebi é que quanto mais vou recuperando a memória recente, mais a memória antiga se apresenta para mim. São momentos muito duros em que é difícil segurar as lágrimas. Choro por dois motivos: porque às vezes revivo momentos desagradáveis com a mesma intensidade de antes, e porque tenho uma dimensão do quanto os AVCs abalaram a minha vida.

Assim, sigo lutando, porque vida de sobrevivente é lutar sempre, e hoje sinto imenso orgulho das minhas vitórias. Este exercício das palavras que apresentei durante o texto, por exemplo, na minha última sessão eu consegui recordar de dezessete vocábulos. Um ótimo resultado. Mas quero mais! Quero chegar ao vinte e um.

Planta. Circo. Mãe. Cadeado. Cadeira. Lua. Guarda-sol. Bexiga. Travesseiro. Roubo. Cortesia. Pedra. Ramalhete. Medo. Olho. Mesa. Bexiga. Hortênsia. Oito. Praia. Branco.

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