Figura de linguagem

As desculpas esfarrapadas finalmente alcançaram a língua portuguesa. O cidadão xinga, ameaça, faz comparações indesculpáveis, imitações grotescas e depois diz que tudo se tratava de figura de linguagem. Isto é, não há dolo, exceto para quem não conhece a gramática. […]

As desculpas esfarrapadas finalmente alcançaram a língua portuguesa. O cidadão xinga, ameaça, faz comparações indesculpáveis, imitações grotescas e depois diz que tudo se tratava de figura de linguagem. Isto é, não há dolo, exceto para quem não conhece a gramática. E como quem critica não quer passar recibo de ignorante, fica sem argumento seguro e engole com farofa a desfaçatez do Canalha (uma antonomásia de “você sabe quem”).

Como já disse Machado (ou teria sido o Sérgio Rodrigues?), o brasileiro acha sério o que é ridículo e acha ridículo o que é sério. Neste caso, muita gente afirma: “mas que besteira isso de ficar pegando no pé sobre o que o cidadão disse ou não disse. O importante é o que ele faz.”. Acontece que dizer é fazer ( incluindo no dizer a onomatopeia do doente morrendo sem ar da doença cuja vacina demorou tanto a chegar). Uma ameaça é algo que se concretiza, caracteriza-se no dizer, como em uma injúria racial, uma ofensa sexual, uma manifestação verbal de preconceito de gênero. Ou não?

Um cidadão (pensei aqui em algumas metonímias possíveis para substituir o “cidadão”, mas desisti) em um lugar de poder e de mando, com imensa visibilidade, exercendo uma função pública de enorme relevância, responsável por dezenas de milhares de cargos diretos e tantos outros indiretos, ao desancar alguém ou algo em uma fala, é só uma metáfora? E sendo assim, não há responsabilidade possível a ser cobrada dele? Esse absurdo, como entender?

Sabemos que vivemos tempos surreais e nem precisa ser um observador muito acurado para perceber isso: o cidadão tem apoio dos evangélicos mas tem práticas pouco cristãs; é representante da família e vive se vangloriando de suas escapulidas; é patriota mas bateu continência para a bandeira dos EUA, país que historicamente esfolou-nos o couro; defende a iniciativa privada, o empreendedorismo, mas viveu a vida inteira às custas da Viúva.
Só há uma explicação plausível para tamanho decalque entre fato e realidade: a vida do cidadão é ela toda uma figura de linguagem, sobre a qual não cabe buscar o sentido literal, mas o paradoxo ali embutido.

No belo filme “O Carteiro e o Poeta”, o personagem do poeta Pablo Neruda ensina o carteiro apaixonado pela moça da vila de pescadores a escrever usando metáforas. A avó da menina procura o padre e conta para ele, apavorada, o que estava acontecendo, a transformação da neta, afetada por aquelas palavras poéticas. E diz, enfática: “ele está usando metáforas, padre. Metáforas!”.

Mais tarde, já bem próximos, naquela amizade inusitada, Neruda pergunta ao carteiro uma metáfora para redes de pesca. O jovem, que temia o mar e sofria ao ver o pai padecer com o emprego bruto e mal remunerado, responde de um só fôlego: “tristes”.

Assim como a História, que se repete como farsa, pelo jeito o uso das figuras de linguagem padecem do mesmo mal. Podem traduzir os sentimentos mais profundos ou esconder as calhordices mais repulsivas. Nesses tempos nos quais os fatos se esfumaram, esta invenção que permite dizer-nos o indizível, as figuras de linguagem, ganhou mais uma função: dizer o que nunca gostaríamos de ter ouvido ou vivido nesse nosso pobre e surrado país.

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