Prazo curto, pressão e ansiedade: a saga dos entregadores do Mercado Livre

Entregadores do Mercado Livre relatam dificuldades (e pontos positivos) da vida de quem corre a cidade levando encomendas

À medida que o dia passava, os amigos começaram a se preocupar com Cleomir (nome falso). Ele nunca deixava de responder os contatos, mas dessa vez ninguém conseguia falar com ele. Uma hora, um dos colegas de entrega achou que tinha passado da hora de procurar Cleomir: usando o rastreador, o grupo encontrou a posição dele num lugar estranho e deserto de São José dos Pinhais.

“Quando a gente chegou era um lugar totalmente vazio, só mato”, conta um dos entregadores que trabalha com Cleomir. “O carro estava aberto, as portas e atrás. A gente procurou em volta e uma hora achou o cara deitado, na chuva, no mato. Totalmente surtado”, conta o amigo que participou do resgate.

Crises de ansiedade estariam se tornando comuns para entregadores de encomendas do Mercado Livre e de outras plataformas, segundo trabalhadores ouvidos pelo Plural. Especialmente em datas especiais para o comércio, como o Dia dos Pais, que acaba de passar, e o Dia das Crianças, que vem por aí, a carga de produtos para entrega e coleta aumenta a ponto de deixar zonzo quem precisa cumprir os prazos.

Depois da pandemia, toda grande cidade hoje tem milhares de pessoas trabalhando com entregas de mercadorias, não só para o Mercado Livre. As pessoas acostumaram a fazer encomendas via Internet e isso movimenta bilhões de reais. Só no primeiro ano da pandemia, o Mercado Livre registrou um espantoso crescimento de 185%. Hoje, com capacidade para entregar 2 milhões de pacotes por dia, a empresa, que tem sede na Argentina, se expande às pressas. A receita também explodiu: foram US$ 2,1 bilhões só no último trimestre de 2021.

Na ponta, isso significa uma só coisa: pressão para entregar tudo no prazo, ainda mais porque algumas compras oferecem ao consumidor a promessa de ter tudo em casa em poucas horas – às vezes no mesmo dia, às vezes no dia seguinte. O exército de entregadores não para de crescer – assim como o Uber no começo, hoje é para o serviço de entregas que correm muitos desempregados em busca de renda.

Centros de distribuição

O dia de um entregador do Mercado Livre em Curitiba começa diante de uma “gaiola” no centro de distribuição, no Hauer. Ao chegar diante de seu compartimento, o responsável pela rota descobre o tamanho do fardo que lhe coube. Por vezes, são 80 volumes. Mas em dias mais difíceis, perto de datas comemorativas, pode passar de 200. Em tese, todos os pacotes de um entregador ficam na mesma área, mas é preciso ser ninja para cumprir a rota em dias desafiadores.

“Eu tenho seis horas para fazer meu serviço de entrega, porque às 14h30 começo a fazer as coletas no comércio”, diz um entregador que trabalha para uma das oito transportadoras terceirizadas em Curitiba. Todas respondem à DHL, responsável pela logística do Mercado Livre na cidade. “Um dia tinha 220 encomendas. Até dei sorte, ficaram só umas 90 faltando, mas não tinha como cumprir aquilo”, conta ele.

O problema é que se você não cumpre 98% da rota, a transportadora terceirizada simplesmente não recebe o valor daquela rota no dia. A transportadora continua tendo de pagar o entregador, mas a conta não fecha. Por isso, em dias de correria mais drástica, os entregadores e as operadoras criam um serviço de “ambulância”.

“A ambulância é um carro que corre pra ajudar quem não vai ter como cumprir a cota”, explica um entregador que trabalha com van. “A gente vai avisando a torre que não vai dar. Normalmente eles nem ligam, mas quando veem que você começou a marcar tudo como insucesso, às vezes mandam socorro.”

Além das oito transportadoras, existe também o contrato individual, sem intermediários, o chamado Mercado Livre Extra. São pessoas que vão ao centro de distribuição sem muita certeza de que haverá trabalho no dia. Seja em uma ou em outra modalidade, o sistema que permite as entregas trava às 23h50 – portanto, é preciso fazer tudo antes disso. O que significa que até pertinho da meia-noite ainda tem gente recebendo encomendas do dia. E cada vez tem sido mais comum receber pacotes depois das 22h.

“Vim aqui para ajudar um rapaz”, disse uma entregadora ao repórter depois das 22h00. “Se não viesse, ele não ia ter como terminar”, explicou, pedindo desculpas pelo horário.

Da biologia à boleia

Bióloga por formação, mas hoje trabalhando como empreendedora, Fernanda Picanço, 41, conhece bem essa correria, mas do outro lado do balcão: ela precisa remeter seus produtos para os clientes. Fernanda trabalha desde 2015 com vendas on-line. “Mercado Livre e é o principal canal de vendas para mim hoje, representando uns 70% das minhas vendas. O que acho mais problemático no Mercado Livre é o incentivo às devoluções. Mas ainda assim é a melhor plataforma que tem”, disse Fernanda, que atua no segmento de produtos de armarinho, na região metropolitana de Curitiba.

Fernanda Picanço: produtos de armarinho sob encomenda. Foto: Arquivo pessoal

Ela ainda contou que os prazos ficaram mais apertados. “Vendo pela Shopee também, faz um ano mais ou menos, mas estou tendo problemas justamente com as transportadoras. Está bem difícil trabalhar com eles, o prazo é meio absurdo. Tudo o que eu vender até as 10h45, preciso enviar até 14h15 do mesmo dia. E o que vender depois das 10h45 posso enviar no dia seguinte. Antigamente era bom, tinha 24h pra enviar, agora são quatro horas, praticamente”, lamentou Fernanda, que leva suas vendas até um ponto de coleta.

“Quando o vendedor vende muito eles fazem a coleta na casa dele direto, mas quando é pouco volume mandam para os places (ponto de coleta), em que pagam para o dono da lojinha quando deixamos os pacotes lá, se não me engano é R$ 0,60 por pacote”, detalhou a empreendedora.

Do metal às rotas

Para Carlos, um metalúrgico de 30 anos, que não será identificado pelo seu nome verdadeiro, a ideia de trabalhar com transporte de mercadorias veio depois da saída da empresa onde era contratado. Ele atua na segunda etapa após a venda dos produtos – passa nos pontos para fazer as coletas.

“Eu sou da plataforma de coletas pela Shopee. Coleto nos locais que vendem produto pela plataforma, levo para o Centro de Distribuição, eles separam e daí depois vai para as entregas. Tenho uma rota fixa que só tem horário pra começar, às 11h da manhã, para terminar não tem horário certo, depende muito da quantidade de volume nos locais. E tem dia que eu passo num local, no outro dia eu já não passo, mas na maioria dos dias eu estou passando, é assim que funciona”, conta o coletor que recebe R$ 400 por dia de serviço, com pagamentos semanais.

Já um arqueólogo, também de 30 anos, viu na plataforma de entregas do Mercado Livre uma alternativa de renda para sobreviver entre um projeto e outro, dentro de sua profissão, que dependem de editais e liberações de verbas.

“Algumas vezes, quando chega dez horas da noite é triste, você não quer incomodar alguém depois das dez da noite né? Não é programado para isso, mas aí, eu já vou avisando antes, mando mensagem. A única que eu não consegui entregar, mandei mensagem e ninguém atendeu. Mas o que o Mercado Livre determina é que você vá até o local, caso não tenha ninguém no endereço, o jeito é voltar e devolver a encomenda no CD [Centro de Distribuição]. Na minha profissão o mercado flutua e, às vezes, eu fico um tempo parado. Como eu estava endividado, decidi entrar para a plataforma e assim tenho os pagamentos semanais, levanto um dinheiro e já estou nisso há seis meses. Existe tanta rotatividade que já sou um dos mais ‘antigos’, para mim compensa porque moro perto do CD, com isso não gasto tanto com combustível”, conta o arqueólogo.

Ele também detalhou como funciona a distribuição das entregas. “São feitas em três frentes: as vans, os carros particulares, em que os entregadores têm de ser MEI – que é o meu caso, e as motos. Nós entregamos o excedente, o que os as transportadoras com as vans não absorvem, daí eles chamam esses carros pelo aplicativo, em que nos cadastramos, deixam as rotas ali disponíveis e a gente aceita”, diz.

Concorrência

Durante a conversa, o entregador também disse que o serviço tem ficado cada vez mais disputado. “O aplicativo avisa que tem rotas novas, aí você abre ali e aceita ou não. Só que pode acontecer de você tentar aceitar e não conseguir, porque as pessoas estão aceitando muito rápido sabe? Seis meses atrás não era assim, quando sobrava rota, eles pagavam mais por elas, agora é tudo padronizado o valor, R$ 164 por rotas de seis horas e R$ 112 pelas de quatro horas. Acho desgastante a função de ficar pegando rota, se fosse algo mais fixo, seria melhor”, diz.

Dia começa com entregadores indo buscar produtos no galpão do Mercado Livre. Foto: Tami Taketani/Plural

“Também subiu muito os custos com combustível e o que recebemos não foi reajustado, então, para poder compensar mais, já soube de gente se desdobrando, pegando até quatro rotas por dia. Muitas vezes é sofrido porque você tem que fechar a rota certinha, do contrário não pode pegar a próxima. No Mercado Livre você não é penalizado por não conseguir entregar uma encomenda, desde que vá até o local, porque o aplicativo transmite nossa localização, então sabe se realmente estivemos em todos os locais, tanto que avisa quando saímos da rota ou se passamos mais tempo parado do que o previsto”, finalizou.

“A grana é boa e eu me divirto”

Tem quem ache que o trabalho, por outro lado, é bom. Para a mulher de 41 anos que abriu mão do negócio próprio para fazer entregas para o Mercado Livre, a nova rotina, mesmo com o estresse do trânsito, tem valido a pena. “Estou há três meses, antes disso eu tinha um delivery de lanches, mas devido à queda das vendas eu comecei no Mercado Livre. Fiz meu cadastro e foi aprovado no mesmo dia. Não penso em parar, gosto muito do que faço, a grana é boa e eu me divirto”, diz ela.

“Quando não quero vir trabalhar, não aceito rota, tenho essa liberdade. Gasto em torno de R$ 25 a R$ 30 de gasolina por dia, ou até R$ 50 quando pego duas rotas. Geralmente tenho pego duas rotas, saio cedo de casa e volto a à noite, mas está compensando. Tenho três filhos, um de 20 anos, que já trabalha e duas meninas de 15 e 13 anos, minha rotina em casa está praticamente igual. Também gosto porque as pessoas nos tratam bem, porque todo mundo fica feliz recebendo suas encomendas”, contou ela ao Plural.

Outro lado

O Plural enviou uma série de questões ao Mercado Livre sobre o relacionamento com os entregadores, com as transportadoras, sobre as regras de pagamento e sobre as rotas de trabalho. No entanto, até o fechamento desta edição, não houve resposta.

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6 comentários em “Prazo curto, pressão e ansiedade: a saga dos entregadores do Mercado Livre”

  1. Johnatan de oliveira

    Eu fui presta serviço numa distribuição do mercado livre.. e não veio uma encomenda…eu carreguei o carro e essa encomenda não estava e não pagaram minha diária fiz 90 entrega sem receber nada por causa de uma encomenda que não veio e mim acusaram eu trabalhei de graça o mercado livre não pode fazer isso com um trabalhador …estou a procura dos meus direitos..por favor alguém responsável entra em contato comigo pelo whatsapp vou deixar meu número..45999826939

  2. tailer teilor Schuzman

    A conta não fecha, não sei se foi um erro da reportagem ou divergência entre os entrevistados, segue os pontos:

    1 – “…conta o coletor que recebe R$ 400 por dia de serviço, com pagamentos semanais.”

    2 -“… o valor, R$ 164 por rotas de seis horas e R$ 112 pelas de quatro horas.”

    A conta não fecha, para ganharem R$400, deveriam trabalhar mais que 24h/dia.

  3. As pessoas que acham que a entrega do mercado livre é rápida deveriam agradecer a esses entregadores que lutam todos os dias, carregamento atrasados, saindo meio dia do centro de distribuição para começar as entregas em outras cidades sabe se lá que horas, a “mordaça” que é colocada nos entregadores por não poderem falar nada, ou se opor a algo, a única resposta é o desligamento que o entregador não poderá mais trabalhar com eles , lembrado que é trabalhar com eles, e não para eles, pois a maioria é MEI, na verdade é que a ponta da lança é o que mais sofre, os valores são baixos pelo custo que é trabalhar com as entregas tendo que ir em lugares quase inacessíveis com buracos, áreas rurais e lugares onde a criminalidade é alta, o entregador não está a dispor só seu veículo e sim sua segurança sua vida, mais como os responsáveis mesmo dizem, em vez de tentar ajudar: ” Se não está bom saia, motorista não falta”.

  4. Procurem saber sobre quem trabalha como Auxiliar Logistico na DHL no contrato do mercado livre, rotinas de 14 horas de jornada de segunda a sábado em épocas de alta demanda, como na Black Friday. A logística tá toda terceirizada, tanto pra quem tá na ponta da lança fazendo as entregas, como também pra quem trabalha nos galpões logísticos, quentes e abafados, o que conta é a produtividade, tudo é cronometrado e contabilizado. Jornada comecando às 04:30h e terminando sabe-se lá que horas, e AÍ de sair cedo, senão você não é efetivado!

  5. Muito triste a real!!!!! Comprei uma panela pelo ML, o entregador chegou no endereço não tinha ninguém. Jogou a caixa com a panela dentro por cima do muro de 4 metros!!! Panela amassada e tampa quebrada, aí pede devolução, espera uma semana e torce que o proximo entregador seja gente e cumpra seu serviço. Muito ruim.

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