Podcast – Razão e compaixão

Hobbes, o grande pensador inglês do século XVII, imaginou um pacto social forjado pela compreensão de que somos seres egoístas e que se vivêssemos sem nenhum controle ou ameaça de punição, seríamos destruídos por nossas próprias compulsões individualistas. A razão […]

Hobbes, o grande pensador inglês do século XVII, imaginou um pacto social forjado pela compreensão de que somos seres egoístas e que se vivêssemos sem nenhum controle ou ameaça de punição, seríamos destruídos por nossas próprias compulsões individualistas. A razão teria sido despertada pelo medo da morte, o temor de que os outros, assim como nós mesmos, somos incapazes de frear nossos desejos de termos tudo, buscarmos a glória em tudo, rejeitarmos a ideia de dar aos outros o que pode nos caber. Como na propaganda que mostrava uma criança na escola, feliz, com uma tesourinha na mão, dizendo para a outra: “eu tenho, você não tem”.

Esse fraqueza de caráter é o nosso elemento comum, nossa marca humana. Somos egoístas, diz Hobbes. Esse é o direito natural, ao qual devemos contrapor um Estado poderoso capaz de nos proteger de nós mesmos.

Rousseau, por outro lado, busca uma interpretação que não seja tão dependente de uma razão incapaz de encontrar outra saída que não a repressão dos instintos e desejos. Diz o filósofo suíço: “embora possa convir à Sócrates adquirir a virtude por meio da Razão, há muito que a espécie humana teria sucumbido se a sua preservação só dependesse do raciocínio dos seus membros”.

E a qual outro meio Rousseau se refere como suplemento ou aditivo da razão? Trata-se da compaixão, essa capacidade natural de  um ser humano reconhecer o sofrimento quando ele ocorre em qualquer lugar, mesmo que não seja um sofrimento já vivido por ele. As experiências negativas que todos tivemos, em vários momentos da nossa vida, criam uma base comum de solidariedade com o sofrimento dos outros. Por isso nos compadecemos com os estranhos, com os distantes, com os que sofrem por coisas que mal somos capazes de identificar. Mas sofremos e, por isso, reconhecemos e sentimos.

Rousseau afirma que a racionalização do homem, ao longo do tempo, anuviou esse fundamento moral e por isso a sociedade civil tornou-se corrupta e cruel. Por outro lado, é exatamente no ambiente degradado, fragmentado e sem esperança que a compaixão pode voltar a despertar como a base de uma nova configuração cívica.

Amós Oz conta uma história, no seu livro  “Contra o Fanatismo”, que nos dá um exemplo muito claro de como a compaixão é capaz de arruinar a mais cínica das racionalidades. Conta Amós Oz que um amigo dele estava viajando em Israel e o motorista defendia, com vários argumentos, a necessidade de os judeus matarem todos os árabes. Ao invés de contrapor as ideias assassinas do radical motorista, o amigo de Oz resolveu embarcar na conversa e deu-lhe corda: “E quem você acha que deveria matar todos os árabes?” perguntou. E o motorista, de pronto: “nós! Temos a obrigação disso”. “E quem deveria dar cabo deles?” O motorista raciocinou um pouco e disse, lógico: “creio que cada um de nós deveria matar alguns deles”. E então o amigo de Amós Oz disse ao motorista: imagine que você foi encarregado de matar os árabes de um quarteirão e, depois de ter executado todos, ao ir embora, você ouve o som do choro de um bebê. “Você voltaria lá e atiraria neste bebê? Sim ou não?”

Bem, o que se operou na cabeça do motorista fanático? Sem querer, sem que sua razão lógica o autorizasse, formou-se a imagem de um bebê, como os bebês que ele conhecera, seus filhos, netos, sobrinhos, bebês lindos e inocentes como são todos os bebês de qualquer nacionalidade, etnia ou religião. E um sentimento inoportuno, subversivo anuviou seus olhos.

Amós Oz conclui a história: “Depois de um momento de silêncio”, disse o motorista ao homem que o despertou da razão ou o despertou para a compaixão: “Sabe, você é um homem muito cruel”. E a viagem continuou sem mais conversas.

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