Jaime Lerner, o arquiteto de Curitiba, morre aos 83

Em três mandatos como prefeito, urbanista criou uma imagem para a capital que correu o mundo; invenções incluem calçadão da XV, Barigui, Rua 24 Horas e o Paiol

O ex-governador e ex-prefeito de Curitiba Jaime Lerner, de 83 anos, morreu há pouco no Hospital Evangélico Mackenzie, onde estava internado desde sexta-feira passada (21), para tratar de uma infecção renal. Lerner estava com saúde frágil desde o fim do ano passado, quando foi submetido a uma cirurgia de apêndice. Em março, teve Covid, mas teve sintomas leves e recuperou-se.

Jaime Lerner foi prefeito de Curitiba por três mandatos (1971-75, 1979-84 e 1989-92) e governador do Paraná de 1995 a 2002. Na capital, é reverenciado como o planejador brilhante, criador de muitos dos parques da cidade, do sistema de transporte que serve de modelo para metrópoles mundo afora, da Rua das Flores e de locais emblemáticos como Teatro do Paiol e Pedreira Paulo Leminski. No Estado, é lembrado como criador do anel de integração que levou à cobrança de caros pedágios em rodovias federais no Paraná, pela tentativa de privatizar a Copel e pela atração dos investimentos de montadoras de automóveis.

Jaime Lerner

Lerner foi líder de um grupo de profissionais que mudou a cara da capital paranaense e deu uma extraordinária contribuição ao planejamento urbano em todo o mundo. Foi o rosto político e o organizador de um trabalho que contou com a colaboração de talentos como Rafael Dely (arquiteto, 1939-2008), Nicolau Kluppel (engenheiro, 1930-2016), Lubomir Ficinski Dunin (arquiteto, 1929-2017) e Carlos Eduardo Ceneviva (arquiteto, 1938-2020), para citar apenas os que já se foram.

Jaime Lerner. Foto: Instituto Jaime Lerner

O ponto de encontro do grupo foi o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), incubadora de ideias que surgiu nos anos 1960 e que teve o engenheiro e arquiteto Jaime Lerner como seu primeiro presidente, a partir de dezembro de 1965. Recém-casado – ele e Fani se uniram em 1964 e se mantiveram juntos até a morte dela, em maio de 2009 – e com 28 anos, Lerner assumiu o comando da repartição em que foram gestados muitos dos modelos que viriam a tornar Curitiba conhecida pela inovação na gestão urbana. A experiência foi ampliada quando ele foi nomeado prefeito, em 1971, pelo governador Haroldo Leon Peres. À época, os dirigentes municipais não eram eleitos, mas indicados e referendados pelo governo federal.

À frente de uma equipe que incluía diversos profissionais de esquerda, Lerner dizia não saber por quanto tempo poderia trabalhar sem sofrer algum tipo de represália. Por isso agiu de forma rápida, produzindo transformações intensas em pouco tempo.

Nesse sentido, é significativa a criação do calçadão da Avenida Luiz Xavier, no Centro da cidade. As ruas foram interditadas em um fim de semana e toda a obra foi feita em 48 horas, em 1972, para evitar que as reclamações de comerciantes da região impedissem sua realização. As queixas vieram, mas em pouco tempo o calçadão tornou-se ponto turístico, permitindo inclusive a expansão do calçamento. Ganhou o nome não oficial de Rua das Flores, designação antiga do local no século 19, reavivada pela presença de quiosques de floriculturas e por floreiras nas calçadas.

Lerner, à direita, em 1969, como presidente do Ippuc. Foto: Gerência de Patrimônio Histórico de Maringá

Lerner mostrou-se um adversário da livre circulação de automóveis, um paradigma da mobilidade até então. Em vez de avenidas largas para os automóveis – marca registrada de Brasília, por exemplo –, defendia a circulação a pé. “O carro é o cigarro do futuro”, disse, em entrevista ao diário espanhol El País, em 2018. “Vai desaparecer em quase todas as partes. Se é preciso continuar fabricando carros para gerar empregos, será para viagens e lazer, não para as cidades. Não há futuro urbano se a cidade depende de veículos particulares.”

Por isso a ênfase de Curitiba tem sido, desde os anos 1970, para o transporte urbano. Primeiro com os corredores exclusivos para ônibus expressos, a partir de 1974. A capacidade do sistema foi sendo ampliada com novos terminais, ônibus articulados e biarticulados e novas linhas, como os interbairros e os ligeirinhos.

Outra marca das gestões de Lerner foi a capacidade de transformar áreas potencialmente complicadas em espaços privilegiados. Foi assim que um lago concebido para contenção de enchentes se tornou o Parque Barigui. Lerner e membros de sua equipe costumavam contar com gosto a forma como apresentaram o projeto para as autoridades financiadoras do governo federal como se fosse um simples projeto sanitário. O paisagismo que fez dele o parque preferido dos curitibanos veio na sequência.

Jaime Lerner com Burle Marx. Foto: divulgação Instituto Jaime Lerner

Obras como essa moldaram a maneira como o próprio curitibano vê a cidade. “Transformar cidades não tem a ver somente com as suas características físicas, mas também com psicologia, cultura e muitos outros fatores”, escreveu o urbanista dinamarquês Jan Ghel na apresentação da edição americana de “Acupuntura urbana”, coletânea de apontamentos de Lerner sobre experiências de planejamento das cidades. Nascido na confluência de culturas, filho de imigrantes judeus poloneses, criado na rua Barão do Rio Branco, formado em Engenharia (1961) e Arquitetura (1964) pela UFPR, Lerner foi o tradutor dessa Curitiba.

Depois de dois mandatos biônicos, Lerner (então filiado ao PDT de Leonel Brizola) enfrentou as urnas em 1985, na primeira eleição direta desde o golpe de 1964. A eleição deu início a uma das maiores rivalidades políticas do Estado, entre ele e Roberto Requião, do PMDB. Requião obteve 227 mil votos, contra 208 mil de Lerner. No ano seguinte, foi candidato a vice-governador na chapa do ex-deputado José Alencar Furtado.

A volta por cima veio em 1988. Lerner havia transferido o título de eleitor para o Rio de Janeiro, onde atuava na equipe do governador Brizola. A quatro meses das eleições, mudou o domicílio eleitoral. Embora a lei exigisse um ano de registro para candidatar-se, ele foi beneficiado pela promulgação da Constituição de 1988, que reduziu esse prazo.  Com uma decisão favorável do Tribunal Superior Eleitoral, entrou na corrida pela prefeitura a 12 dias do pleito. Para viabilizar sua candidatura, renunciaram à disputa Algaci Túlio (PDT), que se tornou candidato a vice, Aírton Cordeiro (PFL) e Enéas Faria (PTB). Em 15 de novembro daquele ano, Lerner foi eleito com 326 mil votos, contra 198 mil do segundo colocado, o ex-prefeito Maurício Fruet (PMDB).

Em seu primeiro mandato como prefeito eleito pelo voto popular, Lerner trouxe algumas inovações bem-sucedidas. Uma delas foi o programa Câmbio Verde, em que as famílias cadastradas poderiam trocar lixo reciclável por alimentos. Também é desse mandato a criação do Jardim Botânico, a Pedreira Paulo Leminski e a Ópera de Arame, locais que se tornaram símbolos de Curitiba, junto com a fama de “capital ecológica”.

Dando aula para taxistas. Foto: Instituto Jaime Lerner

O sucesso da gestão na prefeitura o credenciou a candidatar-se ao governo do Estado. Em disputa contra Alvaro Dias, em 1994, Lerner obteve 2 milhões de votos, contra 1,45 milhão de Dias. Na campanha de reeleição, já filiado ao PFL, bateu Requião por uma diferença de 250 mil votos.

Os mandatos no governo foram caracterizados por uma busca de industrialização, em especial pela atração de indústrias, com importante participação de incentivos estatais. Os contratos com Renault, Audi/Volkswagen e Chrysler e empresas de motores resultaram em investimentos de quase US$ 3 bilhões. O segundo mandato incluiu a privatização do Banco do Estado do Paraná (vendido para o Itaú em 2000), a venda de uma parcela da Sanepar para um grupo de investidores privados e a criação de mecanismos para viabilizar a venda da Copel, além da concessão de rodovias à iniciativa privada. O caso da Sanepar e da Copel foram revertidos ao longo das gestões de seu sucessor, Roberto Requião. Os contratos das concessionárias de pedágio vencem neste ano de 2021.

O fim do período no Palácio Iguaçu teve momentos tensos, como os protestos contra a privatização da Copel e a morte de um trabalhador sem-terra em um confronto com a polícia em Campo Largo, além de greves de professores das universidades estaduais. Já no governo de Roberto Requião, cinco comissões parlamentares de inquérito foram abertas na Assembleia Legislativa para investigar atos relacionados com sua administração: as CPIs do Pedágio, do Banestado, da Copel, do Paraná Cidade e dos Jogos da Natureza. Nenhuma delas chegou a apontar irregularidades formais do ex-governador ou de seus assessores diretos. Em 2011, Jaime Lerner foi condenado pelo Superior Tribunal de Justiça a 3 anos e 6 meses de prisão por dispensa ilegal de licitação na construção de estradas. A pena, entretanto, foi considerada prescrita por ele ter mais de 70 anos de idade.

Dock d=Dock, o carro criado por Lerner depois de sair da política.

Fora das disputas eleitorais desde que deixou o governo, Lerner dedicou-se a seu escritório de arquitetura, e à apresentação de palestras e consultorias em diversos locais do mundo. Foi presidente da União Internacional de Arquitetos entre 2002 e 2005. Projetos inspirados em suas realizações em Curitiba foram implantados em cidades como o Rio de Janeiro, Bogotá, Los Angeles, San Juan de Porto Rico e Istambul.

Deixa as filhas Andrea e Ilana.

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4 comentários em “Jaime Lerner, o arquiteto de Curitiba, morre aos 83”

  1. Bárbara Villa Verde Revelles Pereira

    Faltou citar a privatização do Banestado no segundo parágrafo, mas uma belo texto de sua trajetória como urbanista.

  2. Luiz Fernando A. Pereira Jr.

    Belo texto, mas uma correção: o pedágio não veio no segundo, mas sim no final do primeiro mandato do Lerner. Lançado com um preço absurdo, contrariou o povo e o empresariado. A resposta veio logo na sequência: temendo perder popularidade para a reeleição que em breve disputaria, reduziu por decreto os preços (e as obras) do pedágio em 50% (e ganhou a eleição). E foi justamente essa manobra que deu início aos aditivos contratuais, disputas e reajustes no pedágio, que até hoje nos faz pagar muito sem ter a devida contrapartida.

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