Pretinhosidade: bloco afro de Curitiba resgata raízes do carnaval e exalta cultura negra

Da Vila Torres, Pretinhosidade arrasta centenas pelas ruas da capital e levanta debate sobre a questão racial

Uma das lendas urbanas mais recorrentes de Curitiba é de que não existem negros na capital do Paraná. Os números desmentem: ao menos 24% da população se autodeclara preta ou parda, o que faz da cidade a capital mais negra do sul do país.

De acordo com uma pesquisa de Glaucia Pereira, mestra em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), publicada em 2021, no pós-abolição Curitiba foi desenhada para expulsar a população negra do centro da cidade – a maioria negra.

Na mesma pesquisa consta um mapa mostra que a população negra está concentrada em maiores proporções na parte sul e nas periferias da cidade.

Outra lenda urbana de Curitiba é de que não existe carnaval – de fato, nos dias de feriado o curitibano costuma ir ao litoral. Por outro lado, a manifestação cultural movimenta blocos e escolas de samba entre setembro e fevereiro todos os anos.

Para além do estilo musical, o samba também é um resgate da cultura africana, enraizada na história do Brasil. Em 2017 o escritor Lira Neto lançou o primeiro volume de “Uma história do samba – as origens”, pela Companhia das Letras.

Segundo a origem do samba carioca como conhecemos hoje ocorreu no início do século XX, mas a história remonta do samba rural, do Recôncavo baiano, filho das batidas africanas que chegaram com os negros e negras escravizados.

Popular

Entre as décadas de 1920 e 1930 a indústria fonográfica popularizou o samba com o aprimoramento da radiodifusão e surgiram as primeiras escolas no Rio de Janeiro.

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Mas o samba não era popular apenas no Rio. Em 1946 a primeira escola de samba da capital paranaense nascia: Colorado, fundada por Maé da Cuíca, conforme escreve João Carlos de Freitas no livro “Colorado: a primeira escola de samba de Curitiba”, viabilizado pelo Fundo Municipal de Cultura da Fundação Cultural.

A Colorado inspirou dezenas de outras agremiações e blocos em Curitiba, incluindo o bloco afro Pretinhosidade, cujo reduto é na Vila Torres – área periférica.

Caso de polícia

“O ambiente político estava tão carregado que um policial civil, Antônio Roberto da Silva, ao encontrar em um bar na rua do Lavradio e testemunhar a Embaixada do Sinhô entonando a marchinha ‘Fala Baixo’, decidiu dar voz de prisão a todos os integrantes do grupo, inclusive ao próprio compositor”, escreve Lira Neto, em “Uma história do Samba”.

A demonização do samba era uma tentativa também de silenciar a população negra. “Somos ancestrais. Nossa cultura é feita pela oralidade, pela hierarquia e por isso [o samba e o bloco Pretinhosidade são] uma afronta para a sociedade”, explica Fernanda Machado, integrante na sede do Pretinhosidade, na Vila Torres.

A sede do Pretinhosidade fica na Vila Torres | Foto: Tami Taketani/Plural.

Assim como havia repressão no Rio de Janeiro, em Curitiba a situação não está diferente. O embrião do que viria se tornar o bloco Pretinhosidade nasceu em 2013, numa situação muito parecida. Alan Coimbra e Chica da Silva, moradores da Torres, estavam na Marechal Deodoro no carnaval daquele ano, acompanhando a saída do bloco Garibaldis e Sacis.

“Depois da apresentação, a gente começou a puxar um pagodinho com os instrumentos ali na rua mesmo e a polícia chegou, mandou parar tudo e falaram que estávamos atrapalhando o fluxo”, conta Coimbra.  Décadas depois a repressão ao samba tem como alvo pessoas negras.

Desta ocorrência iniciou uma conversa para a formação de um bloco que reunisse apenas pessoas negras, que retornasse às origens africanas e indígenas. Só em 2017, num almoço no bairro Tatuquara a ideia amadureceu de fato.

E em 2018 nasceu o primeiro e único bloco afro de Curitiba. “O nome a gente queria algo que remetesse à preciosidade, porque nós [negros] somos preciosos. Aí chegamos ao ‘Pretinhosidade’”, explica Chica da Silva, uma das coordenadoras do bloco.

Aquilombar

A Vila Torres é o berço do samba em Curitiba. Mestre Maé, da Colorado, chegou a visitar a quadra da Mangueira no Rio de Janeiro e trouxe o conhecimento para a comunidade.

Atualmente o Pretinhosidade tem 70 pessoas na bateria, 30 na dança e outras 100 no apoio. Deste montante 98% são negras – e eles não pretendem diminuir o percentual. O bloco está para além do samba, é também um movimento social para discutir africanidades e racialização.

A sede alugada fica na rua Baltazar Carrasco dos Reis, ao lado da Mercearia Cordeiro. Dona Maria Odete e seu José Cordeiro, proprietários do local, brancos, são aliados de primeira hora do Pretinhosidade, corroborando o senso de comunidade do bloco.

O casal Cordeiro (nas pontas) e membros do Pretinhosidade | Foot: Tami Taketani/Plural.

“Temos a questão da educação aqui muito forte. Temos livros para as crianças aprenderem sofre a África, sobre os afro-brasileiros e indígenas e não só as negras, as crianças brancas também precisam ter essa consciência”, diz Fernanda.

Diorlei do Espírito Santo, outro coordenador, é quem ministra as aulas de percussão com a criançada do bairro. No dia da entrevista – 2 de fevereiro – chegou às pressas, disse que desejava que estivesse tudo certo, mas teria que sair porque iria acompanhar os alunos para atividades da colônia de férias.

Meninos e meninas são atendidos pela ONG “Passos da Criança”, que fica na quadra ao lado da sede do bloco. ONG e Pretinhosidade encontraram na arte um caminho comum para proteger as crianças dos perigos que rondam o bairro – tráfico de drogas e criminalidade têm índices altos na Vila Torres.  

“A gente [negro] precisa se juntar porque há muita solidão. A solidão da mulher negra principalmente. É uma questão estrutural da sociedade, por isso nos juntamos. E ensinar as crianças sobre isso, sobre o que foi o sofrimento [da escravidão] é importante porque o que fizeram com a gente não é justo”, diz, entre lágrimas, Chica da Silva.

Na rua

Alam Coimbra assumiu questões burocráticas para colocar o bloco, que completa cinco anos no próximo dia 12, na rua. Grande parte dos instrumentos são emprestados ou doados e há recurso de R$ 6 mil, conquistado por meio de um edital, para manutenção, mas não para aquisição de novos.

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O aluguel e despesas operacionais são pagos com a venda de abadás – que variam de R$ 45 a R$ 50 conforme o modelo, bem como apresentações do grupo. Também são promovidos eventos (no próximo dia 12 haverá samba e feijoada na Vila Torres. Os convites custam R$ 25).

Apesar disso, o bloco vai para a rua. A marcha deste ano, composta por Léo Fé, homenageia a Mãe de santo Iyagunã Dalzira Maria Aparecida, que no ano passado defendeu sua tese de doutorado, aos 81 anos, na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

As primeiras saídas de 2023 do bloco afro Pretinhosidade reuniram centenas. Algo que desde a primeira ocasião emocionou os participantes. “Muito importante nossa gente [negra] reunida. Acho que faltava essa representatividade também no carnaval de Curitiba, assim como há os outros blocos de mulheres e da diversidade”, diz Coimbra.

No domingo, dia 5 de fevereiro, o bloco sai da Vila Torres – na periferia, diferente da maioria das ações de carnaval de Curitiba. A apresentação começa 14h, na sede e também reúne outros blocos e agremiações.

Resgate das raízes

O escritor Lira Neto conseguiu reunir em seu livro diversas imagens que ilustram os primórdios do samba no Brasil. Uma delas data de 1868 e mostra africanos com tambores no Rio de Janeiro. O registro foi feito por Christiano Jr.

A sonoridade do tambor tem ligação direta com as religiões africanas e suas derivadas. Nas músicas o Afropretinhosidade valoriza a cultura ancestral e reforma a luta contra o racismo.

O ritmo dos tambores, atabaques, repiques e outros instrumentos de percussão não característicos da cultura negra e passados dos mais antigos para os mais novos, como faz Diorlei.

O resgate das raízes africanas por meio da percussão e das atividades do bloco reforçam as ancestralidades da população negra de Curitiba. “É muito importante que essa informação [sobre o Pretinhosidade] chegue a mais irmãos e irmãs de que existe o bloco afro, porque precisa chegar no máximo de pessoa pretas possível, diz o professor.

Para saber mais sobre o bloco afro e acompanhar a agenda de carnaval, basta acessar o Instagram.

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