Capital mais negra do Sul, Curitiba passou por branqueamento estratégico, aponta pesquisa

Pesquisa da geógrafa Glaucia Pereira mostra que, ao contrário do imaginário social que se criou de uma Curitiba branca e europeia, o número de pessoas declaradas negras (24%) é o maior entre as capitais sulistas

Apesar de ser a capital com o maior número de pessoas negras da região sul do Brasil – 24% da população -, Curitiba ainda é uma cidade marcada pela segregação e desigualdade racial que insiste em negar a história e cultura afrodescendente que a formou. É o que evidencia a pesquisa “A racialização do espaço urbano da cidade de Curitiba- PR“, de Glaucia Pereira, Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Desenvolvido em 2021 com o objetivo de expor que Curitiba foi arquitetada para expulsar a população de baixa renda e negra do centro da cidade, o estudo de Glaucia é um dos poucos que discutem a segregação espacial urbana circunscrita à questão racial e as territorialidades negras na capital paranaense. 

Conforme a pesquisa da geógrafa, embora Curitiba mantenha indicadores de desenvolvimento humano e condições de vida altos, a cidade passou por processos de planejamento urbano de caráter segregacionista que excluíram a população negra de determinados espaços.

Esse afastamento, segundo a autora, é derivado principalmente de discursos colonizadores e políticas eugenistas que ocultam até hoje a participação da população negra na formação sociocultural de Curitiba. 

“A capital do Paraná se projeta como um lugar que não passou por um processo escravagista e que não teve em sua construção a participação da população negra. Dessa forma, historicamente forjou uma especificidade cultural e étnico-racial para a cidade como a capital mais europeia do Brasil constituída por população branca, ainda que, conforme apontam os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017, os negros e negras que se reconhecem como tais, representem 24% da sua população, ou seja, quase ¼ do contingente populacional da cidade”, diz um trecho do estudo.

Herança colonial

De acordo com a pesquisa, a população negra carrega, historicamente, uma herança colonial que a coloca em desvantagem – inclusive espacial e territorial – se comparada à parcela branca da sociedade.

Em 1888, a Lei Áurea trouxe a liberdade de escravizados e escravizadas, no entanto, não promoveu nenhum suporte econômico e social a eles. Sem condições financeiras e isolados pela sociedade, os recém-libertos acabaram ocupando os espaços mais precários e periferizados das cidades.

Sete anos depois, em 1895, quando foi promulgado o primeiro Código de Posturas de Curitiba, já era possível observar um ordenamento da cidade que visava expulsar da região central pessoas pobres e pretas. Segundo o estudo, “essa concepção higienista se agrava com o segundo Código de Posturas da cidade aprovado em 1919, uma concepção urbana de sistema hierarquizado no espaço urbano, com limitação das funções da cidade é potencializado. O código dividia a cidade em 3 zonas e impedia a construção de casas de madeira na região central da cidade para o seu ‘enobrecimento’, ou seja, casas mais simples não poderiam estar no centro da cidade”.

No século XX, Curitiba passou por um grande aumento populacional em decorrência da chegada de imigrantes europeus, e isso resultou em um processo de urbanização desordenada. Para reorganizar a cidade, no entanto, foram pensados planejamentos excludentes e seletivos. Assim, as áreas centrais, habitadas em sua maioria por pessoas de alta renda, passaram a receber os maiores investimentos públicos para saúde, cultura, educação, segurança e infraestrutura, o que as tornou regiões ainda mais valorizadas e impossibilitou e de maneira mais decisiva o acesso das camadas pobres.

Sobreposição de opressões

Além da questão econômica, o estudo de Glaucia evidencia que a segregação racial é fruto de processos históricos, geográficos e sociais. Uma sobreposição de opressões que foi impulsionada também pela gestão urbana de Curitiba.

Comparando o mapa de distribuição da população branca e negra da capital com o mapa de renda média dos domicílios por bairro, a pesquisa demonstrou que enquanto a população negra se encontra em territórios pobres e marginalizados, distantes da infraestrutura e equipamentos públicos, a população branca, com maior poder aquisitivo, vive em lugares mais privilegiados. “Existe uma geografia profundamente racializada que estabelece um uso diferenciado e desigual do espaço geográfico para o grupo negro.”

“O mapa mostra que a população negra está concentrada em maiores proporções na parte sul e periferizada da cidade, assim, ao compará-lo com o mapa de renda, fica evidente que, os bairros que possuem a maior parcela da população branca são os que concentram maior faixa de renda (Mossunguê, Seminário, Batel, Bigorrilho, Alto da Glória, Juvevê, Hugo Langue, Jardim Social, Cabral, Ahú), já os bairros com rendimentos domiciliares menores, que concentram moradores de “classe baixa” estão localizados na região sul, sendo periféricas em relação ao centro da cidade, com destaque para a Cidade Industrial de Curitiba (CIC), Sítio Cercado e Cajuru, que possuem a maior concentração de população negra e de baixa renda em Curitiba”, analisa o estudo.

Para a autora da pesquisa, publicizar dados da segregação social entre os negros e brancos é significativamente importante pois revela “o mito da não existência negra na cidade perpetuado por um imaginário eurocêntrico e racista que ainda persiste nos dias atuais, em um discurso que reproduz um racismo urbano velado”.

Dando visibilidade a essa questão, Glaucia chama a atenção para a importância de se planejar um centro urbano com foco na multiplicidade, realizando ações concretas de combate às desigualdades que atenda as demandas das diversas parcelas sociais que formam a cidade.

Glaucia Pereira

A geógrafa e pesquisadora da UFPR mantém o perfil @empretecendocuritiba, no Instagram, no qual posta diversos conteúdos, além de suas pesquisas, a fim de tirar da invisibilidade a história negra de Curitiba.

Glaucia também é autora da pesquisa “Territorialidades negras em Curitiba-PR: Ressignificando uma cidade que não quer ser negra”, que pode ser acessada por meio deste link.

Reportagem sob orientação de João Frey

Sobre o/a autor/a

17 comentários em “Capital mais negra do Sul, Curitiba passou por branqueamento estratégico, aponta pesquisa”

  1. Morgana Sabrósio

    Matéria excelente. Infelizmente, carregamos uma visão fantasiosa de Curitiba. É uma cidade linda, mas essa percepção começou a me incomodar depois de algum tempo, pois é claro que a população preta foi segregada às periferias. No centro costumamos ver mais pessoas brancas. Certos comentários aqui mostram bem a ignorância de certas pessoas em insistir em ignorar o óbvio ululante. Seriam bolsonarentos que se sentem representados por uma cultura racista?!
    Parabéns pela matéria.

  2. Alguns comentários acima reforçam a forma paroqui- ana, provinciana, dos que insistem no silêncio covar- de de omitir um trabalho científico, que prova a realidade e a plena e completa ignorância dos autores. Parabéns pelo trabalho !

  3. Qdo Curitiba foi “apelidada” de ” capital mais europeia do Brasil, não estava se referindo a cor da pele, mas a política de urbanização do saudoso prefeito/ governador/ urbanista/ visionário/premiadíssimo sr Jaime Lerner. Quem vem pra cá, consegue ver a diferença de Curitiba em relação as demais capitais.
    Acho muito interessante este levantamento geográfico, no entanto, levantar uma bandeira racista para tentar explicar as desigualdades sociais? Isto me fez lembrar de uma matéria na TV onde uma mulher, estudante de MEDICINA , negra, nordestina veio para o sul estudar ( neste caso, Santa Catarina), e ela dizia a repórter: ” Passei por muito preconceito… na faculdade de medicina os professores perguntavam qual era o sobrenome dos alunos e o meu não era alemão, então me senti excluída.” Bom aí já é um problema de complexo, né? Vc vem estudar em um local onde a maioria é descendente de uma destas etnias, e vc se sente excluído? Para com isto! Uma médica? E o que aconteceria se um destes alunos fossem estudar na Bahia, por exemplo? Só pq a maioria são descendentes afros ela deveria se sentir excluída? Não né?!

  4. Sou preta, morei jja morei em Paris, água verde, Pinhais e no Cajuru onde nasci. E moto aqui ainda, no meu bairro. E não trocaria ele por nenhum dos bairros citados na matéria, porque não tem as características que considero importantes para viver lá, pois dependem totalmente do centro da cidade, mercados e panificadoras longe, cartórios, shopping, bancos, não estão próximos de casa. O bairros estão crescendo, pequenos centros, encontramos tudo que precisamos aqui e conforme as grandes cidades alcançarem seu limite de crescimento, a tendência e de crescerem os demais bairros e regiões metropolitanas como Pinhais, Piraquara, fazenda rio grande, o nome disso não e racismo.

  5. Andreas adriano gumz

    Curitiba e região não tinham escravos em quantidade significativa, pois era uma localidade pobre, os não brancos aqui presente hoje são consequência da industrialização que iniciou-se na década de 70.

  6. Nunca li tanta Besteira em uma única matéria. Essa agenda racista-politica só serve para pessoas que não conseguem e ainda não entendem que é necessário esforço e estudo para crescer , mas ao invés disso esperam assistência dos governos e matérias pobres como está para disseminar ainda mais algo que nem mesmo na sociedade esta sendo admitido, apenas pseudo jornalista que fazem questão de insistir para ganhar “seguidores”. Sou branco e não moro no bairro se rico porque não posso e não por minha cor. Esse tipo de matéria deveria ser banida ou processado os autores com disseminação de ódio ou terrorismo.

  7. SILVANA PEREIRA DA SILVA

    Parabéns pela matéria Glaucia, quanto ao comentário de Gesiel, então o negro tem que viver situações que o excluem, viver o lugar que foi escolhido pra ele na história e não buscar o seu verdadeiro lugar na história é isso?

  8. José Roberto de Vasconcelos Galdino

    A julgar por alguns comentários, pesquisas sérias não servem, é melhor arrotar comentários baseados em achismos pre(é)conceituosos. Pensamento típico de conservadores leitores de veja e gazetinha das elites. A desigualdade social, racial e de gênero é uma constatação baseada em estudos sério. Não basta a Constituição afirmar que todo(a)s são iguais perante a lei. Mero discurso e retórica vazia. Na prática já nascemos desiguais na cor da pele (e teve quase 4 séculos de escravização neste país – e até hoje negro/as ganham muitíssimo menos que branco/as), no sexo (sociedade patriarcal e machista desde o período colonial – mulheres ganham muito menos que homens pelo mesmo trabalho), na condição social (elites latifundiárias – com terras, sesmarias, recebidas da Coroa Portuguesa; escravagistas – ou seja, quem produzia as riquezas eram os escravos indígenas e negros; e com o dinheiro, por fazerem parte das elites econômicas portuguesas ou brasileiras), no local de nascimento (uns nascem em favelas, lugares pobres e outros em casa de ricos, uns moram longe, não tem o que comer e precisam trabalhar desde cedo – ganhando uma ninharia, outros moram no centro ou nos bairros nobres, comem bastante e não precisam trabalhar desde cedo – vão estudar para ter uma melhor qualificação). Ganhar prêmio Nobel ou não tem a ver com muito investimento em pesquisa teórica e aplicada (geralmente dado para áreas técnicas e não para área de humanas e sociais), coisa que nosso país sempre teve pouco. E “mimimi” é coisa típica de fanáticos bozonarista e moristas ainda não arrependidos (e que não tem argumentos) com a merda que transformaram este país. A dissertação critica o mito da Curitiba branca, europeia, do sul-maravilha, do nazistificante “o sul é o meu país” com bons argumentos (as elites ervateiras do séc XIX já moravam no Batel e Alto da Glória, hoje acrescenta-se aí Jardim Social, a Ecoville, etc e temos a Curitiba burguesa rica). Lá na periferia, cada vez mais longe, ficam os negros e brancos pobres. Contestem o trabalho de pesquisa com bons argumentos, não com abobrinhas de quem nunca lê nada bem fundamentado!!!

  9. Parabéns pela pesquisa, fechar os olhos para o racismo é alimentar ele mais ainda. Incrível como vidas foram perdidas e prejudicadas , a questão não é retórica e sim evidente. Já ouvi comentários do tipo: “Nossa ucraniano, pretinho deste jeito e a partir daquele dia notei que a cor do meu bronze incomodava muito ” Ter que se esforçar o triplo , não ter seu nome registrado em projetos. Nunca me revoltei, pois eu sei que é com muita educação e trabalho que os esteriótipos são quebrados. Incrível como os olhos são treinados.

  10. Essa matéria serve apenas para: segregar irmãos esclarecidos(independente dessa pseudo-educação sistemática), tirar o foco e perpetualização da discussão. Sou negro, sou branco, sou vermelho, sou pardo, sou SER HUMANO. Sou pobre, sou trabalhador. Não necessito que falem por mim da minha história e nem que nos coloquem uns contra os outros. Agends. Agenda. Agenda.

  11. Para morar em bairro de rico tem que ter dinheiro. Se não tem, não mora. Pelé é rico e pode. Branco pobre também não pode porque nada é de graça. Não é a cor que decide, é o dinheiro. É uma pesquisa inútil, universidade pública desperdiça nosso dinheiro e quem paga a conta é o cidadão. Por isso até hoje não temos um Prêmio Nobel sequer! Segundo a pesquisa…a solução para fazer o pobre morar no centro é expulsar os moradores atuais? E os asiáticos e árabes ricos…por quê não são pobres?

  12. Luiz Augusto Santos Rodrigues

    Que comece o mimimi. Posturas como essa somente fomentam o preconceito e a exclusão. Se cada um se preocupar em fazer o seu melhor, e não alimentar manifestações verborrágicas, todo esse preconceito irá pro ralo. Existe? Sim. Por quê? Porque cada lado alimenta o ódio e as diferenças.

  13. Nardes Dias de Souza

    Sou pós-graduado em Artes pela Universidade Federal de Mato Grosso.
    Parabéns Glaucia pela pesquisa que vêm não só enriquecer a nossa história, pois também sou de ascendência negra, como também denunciar essas atrocidades contra a nossa raça, a muito penalizada por políticas xenofóbicas.
    Por conseguinte, a alguns dias atrás sofri com esse mal. Eu estava numa lanchonete próximo da onde moro, um senhor começou a me dirigir palavras de ofensas racistas.
    Fiquei com muita raiva, ao mesmo tempo triste por ainda haver pessoas desse tipo.

  14. Francisco Mendonça

    Parabéns pelo estudo, ele mostra, como poucos, que Curitiba é uma cidade como as demais no país marcado por uma urbanização excludente e caótica!

  15. RAQUEL ALVES PRATES

    Parabéns pelo belo trabalho de pesquisa! Sempre me perguntei onde estavam os negros no mapa do PR. Sou professora de História, mulher, preta, me sinto invisível aos olhos dos livros didáticos e no meio acadêmico.

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