“Nova lei” dá força à militarização das escolas, mas modelo segue questionável

Deputados aprovam alterações e entidades veem problemas na equidade de ensino e investimentos

“Se nós queremos que dê certo, nós vamos fazer de tudo, inclusive corrigir erros”, afirmou, em tom de conflito, o deputado Hussein Bakri (PSD) em seu discurso sobre a remodelagem do projeto de militarização das escolas da Rede Pública do Paraná aprovado, sem debate público, na última quarta-feira (13), na Assembleia Legislativa (Alep). A fala do líder do governo foi durante sessão virtual da Casa, convocada em caráter extraordinário a pedido do governador Ratinho Jr. (PSD) para alterar a lei que trata do programa de implantação dos colégios cívico-militares, aprovada em regime de urgência em setembro passado.

Nos bastidores, a expressão “correção de erros” usada pelo correligionário foi interpretada como uma maneira elegante, uma espécie de eufemismo, para se referir às manobras empreendidas pelo governador para fortalecer a militarização das escolas da Rede Pública e impedir uma enxurrada de questionamentos legais que encurralam o programa – os mais recentes foram enunciados pela seccional paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR).

Isso porque mais de 100 de escolas onde o modelo foi autorizado, por meio de uma controversa consulta pública, não se encaixavam nos critérios definidos previamente. Até o momento, o Paraná é o Estado mais empolgado com o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), lançado em 2019 pelo Ministério da Educação, com ressalva de autonomia aos entes federativos para definir regras e critérios próprios.

Pelo menos 117 das 200 unidades em que haverá mudança ofertam ensino noturno, revelou balanço da APP-Sindicato, entidade que representa os professores estaduais. Oferecer aulas à noite é uma característica que tira a escola da lista de execução do programa. Pelo projeto original, outras particularidades de admissão seriam: estar em município com mais de 10 mil habitantes e se encaixar, ao mesmo tempo, em um contexto de alto índice de vulnerabilidade social, baixos índices de fluxo escolar e baixos índices de rendimento escolar.

Agora, a mudança autorizada na Alep retira o limite mínimo populacional e não obriga a simultaneidade de indicadores – apenas um deles já se torna aceitável. A Secretaria de Estado da Educação e do Esporte (Seed) diz que a ideia é justamente ampliar “o escopo para a indicação de escolas que possam vir a fazer parte do programa”.

Por outro lado, professores e parlamentares da oposição acusam a mudança de dar fôlego ao governo para manter no programa escolas em desacordo com as regras, mas indicadas por políticos e aliados. Segundo os educadores, o novo texto da lei amenta o conjunto de unidades aptas, mas, ao mesmo tempo, reduz a possibilidade de decisão de pais e alunos que não querem frequentar unidades inseridas neste modelo.

“Querendo ou não, o texto de antes tinha mais critérios. Mas [essas mudanças] tiram a possibilidade de escolher frequentar ou não frequentar uma escola militarizada. Tudo bem que mantém a necessidade de haver duas escolas, no mínimo, na cidade, mas leva em consideração onde ficam essas escolas, a distância entre elas, como o aluno que não vai mais ser atendido ou não quer vai fazer para chegar à outra?”, questionou o deputado Tadeu Veneri (PT), que integra a Comissão de Educação da Alep.

“Primeiro o prefeito propôs e sancionou a lei com uma influência muito grande de deputados e prefeitos. Aí descumpriu e desrespeitou a própria lei e resolveu convocar sessões extraordinárias para ampliar o alcance de compreensão dessa lei, na verdade, corrigindo uma ilegalidade”, contesta Hermes Leão, presidente da APP-Sindicato. “Acho muito grave essa prática que simplesmente concentra a decisão e muda o que está incomodando sem fazer nenhuma reflexão, nenhum debate. A sociedade deveria estar escandalizada por, em plena pandemia, os deputados se reunirem a pedido do governador para definir um projeto educacional sem debate.”

Na outra ponta, as alterações tornam incompatíveis ao modelo cívico-militar escolas que tenham Ensino Técnico, Ensino Integral, sejam de dualidade administrativa (que também funcionam sob gestão municipal) ou sejam rurais ou quilombolas – modalidades não oferecidas nas unidades pré-selecionadas pelo governo.

A mesma precaução não se teve com estabelecimentos onde havia Centros de Educação Básica para Jovens e Adultos (CEEBJA). Assim como o Ensino Noturno, o ensino de jovens e adultos será desativado em unidades que se tornarão cívico-militar. A Seed não respondeu ao Plural quantas escolas encerrarão estas atividades específicas para se adequarem à lei do programa. Também não informou quantos alunos serão afetados e resumiu que “os estudantes serão remanejados para escolas próximas geograficamente, e a modalidade continuará a ser ofertada normalmente”. As matrículas, acrescentou a pasta, serão nas escolas onde ocorrerá o novo atendimento, diretamente na nova instituição.

“Com o começo do ano letivo é que tudo isso vai estourar. Tem muito estudante que não sabe ainda que não tem mais a escola à noite”, aposta Leão. Segundo ele, a exclusão de escolas com CEEBJA vai ao encontro de uma das principais pretensões do governo, que é usar o programa para aumentar as notas do Paraná no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), indicador do Ministério da Educação que mede a qualidade do Ensino Público no país.

“Isso faz parte da busca obcecada deste governo pelo primeiro lugar no Ideb nacional. Jovens e adultos sem condições de estudar no seu próprio período etário, que já trabalham, já têm responsabilidades com família, têm toda uma dificuldade de vida porque fazem parte da massa de gente que precisa trabalhar para sobreviver e que, por isso, enfrentam mais dificuldade com a avaliações”, acrescenta.

Modificações não eliminam controvérsias

Especialistas e entidades alegam que – fora a polêmica em torno da decisão do governo de alterar os critérios para manter a fôlego do programa – a legislação, suas propostas e seus objetivos continuam controversos.

Em parecer divulgado no dia 13 de janeiro, a Comissão da Criança e do Adolescente e o Grupo de Trabalho sobre Direito Educacional da OAB-PR alertaram para “sérios indicativos de inconstitucionalidade do novo modelo de colégios cívico-militares” do Paraná, onde estudarão 129 mil alunos.

Segundo o relatório, o programa caminha na contramão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Base da organização da Educação pública brasileira, a norma federal define a gestão democrática como força motriz do sistema educacional, sustentada pela participação dos professores e da comunidade na elaboração de projetos pedagógicos, ao mesmo tempo em que garante a autonomia pedagógica e administrativa das unidades públicas.

O parecer traz ainda que as regras do projeto investem contra  a universalidade e a equidade do ensino público garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pela própria Constituição Federal.

“Nesse aspecto, há de ser destacado que a criação das escolas cívico-militares – com ênfase simplista na implantação de uma rígida disciplina, sem atentar aos outros objetivos educacionais, e, ainda, com a priorização de investimentos em decorrência de se tratar de projeto fundamental de governo, em detrimento das demais escolas públicas – poderá comprometer a ideia de princípio da universalidade e equidade da Educação, previsto no texto constitucional, na medida em que estipula categorização entre escolas da Pede Pública, com evidente distinção dos elementos de gestão e de financiamento entre as mesmas, com reflexos diretos na qualidade estrutural e do ensino ofertado por tais unidades escolares”, diz trecho do texto.

Segundo a OAB-PR, o investimento garantido às unidades cívico-militares é outro ponto controverso, pois poderia colocar as escolas do programa em situação de vantagem para a prática das atividades.

A promessa do Executivo estadual é aportar R$ 80 milhões às unidades que migrarão para o novo modelo. O valor inclui o pagamento aos 806 policiais militares da reserva – previstos para atuarem na gestão e em atividades de monitoria dos colégios. Conforme a entidade, isso constitui outro desrespeito à LDB, pois a lei não menciona policiais militares como profissionais habilitados para atuarem na Educação escolar básica.

“A despeito, a inclusão de militares na gestão e execução da política ‘Programa Militares’, educacional, através do Colégios Cívico- mesmo não sendo diretores pedagógicos -, não está em sintonia com mandamentos constitucionais a respeito da Educação Brasileira. [..]. A disciplina em escolas de Educação certamente é necessária, mas não se pode imaginar que ela somente seja possível mediante a atuação de profissionais oriundos da carreira militar e que, simplesmente, transformar escolas públicas em escolas cívico-militares, com inserção de pessoal da reserva da polícia militar na direção dessas escolas, será a solução para todos os problemas educacionais.”

Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Continência ao Ideb

“Elevação da qualidade de ensino medida pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica” é a diretriz central do programa dos colégios cívico-militares desenhado pelo governo do Paraná. Entre seus objetivos está enfrentar a violência e “promover a cultura de paz no ambiente escolar”, em um esquema mais rígido de disciplina. Por isso, trata-se de uma parceria entre as Secretarias Estaduais de Educação e da Segurança Pública, ou seja, de uma prática combinada entre professores e policiais militares, do corpo de militares estaduais inativos voluntários.

“Esse programa será transformador para o Paraná. Para entregar a melhor Educação do Brasil precisamos ampliar os projetos e trazer novas ideias”, afirmou Ratinho Jr. ao anunciar pela primeira vez a ideia do projeto, no dia 26 de outubro. “Esse é um modelo vencedor. Se é vencedor, queremos ofertar essa modalidade”, completou.

No curto período em que o projeto esteve em discussão na comunidade – entre o anúncio e as consultas públicas foram apenas dez dias –, a ideia de elevar o Paraná ao maior patamar do Ideb no país endossou os argumentos do governo. Composto a partir da relação entre a taxa de aprovação e as médias de desempenho nos exames aplicados pelo Inep (Prova Brasil e Saeb), o indicador avalia, em linhas gerais, o domínio da leitura e da capacidade de resolução de problemas para criar um parâmetro de avaliação da qualidade da Educação no país, além de servir como base para o estabelecimento de metas e políticas públicas na área.

Neste sistema de avaliação, o Colégio da Polícia Militar do Paraná (CPM) costuma atingir resultados de destaque e, por isso, estampou a bandeira de campanha do programa governamental das escolas cívico-militares. Em 2019, a unidade alcançou a segunda melhor média paranaense do Ideb no Ensino Médio (a primeira foi do campus Pato Branco da Universidade Tecnológica Federal do Paraná).

Nos anos finais do Ensino Fundamental, o CMP também superou a média estadual e nacional, mas aparece em sexto na lista: o primeiro é o Colégio Militar vinculado ao Ministério da Defesa, seguido de quatro escolas estaduais regulares (Escola Estadual do Campo Professor Leonardo Salata, em Palmeira; Colégio Estadual Professora Déa Alvarenga, em Londrina; Escola Estadual do Campo Vinícius de Moraes, em Nova Santa Rosa; e o Colégio Estadual Castro Alves, em Quedas do Iguaçu).

Com estrutura, projeto pedagógico e verba independentes da Rede de educação do Estado, o CPM tem sistema de acesso limitado e só ingressam nele estudantes aprovados em processo seletivo. Em Curitiba, há cursos “pré-vestibulares” específicos para o exame, muito concorrido.

“Uma coisa é defender que exames como o Ideb devam existir e outra coisa é analisar o que eles podem nos dizer, o lugar que eles devem ocupar. Não há nenhum indício de que essas escolas com militares à frente tenham melhores resultados porque têm militares. Isso é uma falácia”, afirma Ocimar Alavarse, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

Estudioso do Ideb, Alavarse não acredita que a fusão de policiais ao corpo pedagógico seja a saída que o Brasil precisa para melhorar a qualidade do ensino da rede pública. Segundo ele, a militarização das escolas não é um projeto, mas uma “concepção” baseada na ideia de que as escolas têm que ser ambientes de exercício de autoridade e disciplina.

Ainda conforme o docente, a mudança por si só também não é garantia de alta performance de estudantes nos exames e avaliações instituídos no sistema de ensino.

“E não se trata de desprezar os aspectos que o Ideb mede, porque a proficiência em leitura é uma das mais importantes proficiências que alguém precisa ter para aproveitar a própria escola, além de outros aspectos em sociedade, assim como a capacidade de resolução de problemas. Mas outra coisa é achar que isso é tudo o que a escola tem que fazer. O governo tem uma visão muito restrita do processo de escolarização, de concentrar tudo no Ideb. Sem contar que nem há indício que a adoção do modelo cívico-militar leve ao aumento do Ideb”, observa Alavarse.

Mais oferta, diz Seed

Por meio de nota, a Seed respondeu ao Plural que a alteração da lei, ao ampliar a possibilidade para que escolas façam parte do programa, também aumenta a oferta de modalidades de ensino. Em contraposição ao relatório da OAB-PR, a pasta disse que os novos critérios respeitam a pluralidade de modelos oferecidos aos estudantes da Rede e mantém a oferta universal de acesso ao ensino.

Apesar das críticas ao processo de implantação do programa, que bateriam de frente com o sistema de gestão democrática e autonomia das escolas, a Secretaria defendeu que o processo, baseado em consulta pública aberta à comunidade, respalda o que diz a lei. “Sendo assim não há uma imposição de mudança, respeitando justamente a autonomia de cada instituição para decidir qual caminho seguir”, diz o texto, acrescentando que não há nada ilegal com a contratação dos policiais militares que atuarão nas unidades.

“[…] a presença dos militares de reserva em escolas cívico-militares é prevista no art. 33° da Lei 19.130/2017. Todos os servidores precisam estar credenciados na Secretaria de Segurança Pública – SESP-PR e vão passar também por avaliação e formação por parte da Seed-PR. Há uma série de requisitos e perfil com o qual estes servidores precisam estar de acordo para atuar nos Colégios Cívico-Militares”, finaliza a Seed.

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1 comentário em ““Nova lei” dá força à militarização das escolas, mas modelo segue questionável”

  1. Juarez Varallo Pont

    O que mais me preocupa nessa indisfarçada militarização das escolas públicas, que o governador do Paraná tenta implantar sem um debate mais amplo com a sociedade, é a ideolização deste espaço que deveria ser plural por excelência, trazendo a esses jovens ainda em formação, um conjunto de ideias obscurantistas, terraplanistas e que irão. no médio prazo influenciar nas suas escolhas futuras, seja em termos de comportamento social, seja em termos de postura política. Há que se considerar que essa “boquinha” dada aos oficiais da reserva, serve para ampliar o leque de apoiadores incondicionais desse (des)governo.

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