A violência obstétrica é uma das mais cruéis formas de violência contra a mulher

No dia 03 de maio de 2019, o Ministério da Saúde emitiu um despacho vetando o uso do termo ‘violência obstétrica’, sob o argumento de que o conceito ‘tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado […]

No dia 03 de maio de 2019, o Ministério da Saúde emitiu um despacho vetando o uso do termo ‘violência obstétrica’, sob o argumento de que o conceito ‘tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério’.

Contrariando o que dispõe a OMS, o despacho consolida a mudança de posicionamento da pasta. A alteração é muito impactante para todo o movimento de mulheres pelo parto humanizado e pelo fim de práticas atentatórias à dignidade da gestante e da parturiente.

A mudança, publicada justo no mês das mães, é particularmente significativa, mesmo para um governo pouco preocupado com atender as reivindicações dos movimentos de mulheres. Isso porque mostra o desconhecimento sobre o que de fato acontece com as gestantes e parturientes nos hospitais brasileiros, desconsidera dados amplamente divulgados sobre as dificuldades do sistema de saúde brasileiro e o quanto uma mentalidade que despreza a dignidade da mulher impacta nesse serviço.

Mas afinal de contas o que é violência obstétrica?

Violência obstétrica é qualquer tipo de violência contra mulher durante o processo de gestação, com ou sem seu consentimento e pode ser física, psicológica ou institucional. Não é uma definição ideológica, mas sim o reconhecimento de um problema diagnosticado por dados estatísticos.

Qualquer ato como negativa ou dificuldade de obter atendimento no hospital, impedir que a gestante seja acompanhada durante o parto, ser privada do contato com o bebê durante a primeira hora de vida, não poder ingerir alimentos ou água durante o trabalho de parto, sofrer exames desnecessários por vários profissionais, não receber medicamentos para dor quando solicitados ou ser obrigada a tomá-los, ter que se submeter à lavagem intestinal, ser alvo de procedimentos sem ser consultada, ser isolada, trancada ou deixada sozinha, ser obrigada a parir deitada, ser induzida à realização da cesárea, sofrer episiotomia sem necessidade – o famoso e absurdo ‘ponto do marido’, fazer parto fórceps sem necessidade, ser xingada, ouvir comentários depreciativos – como ‘na hora de fazer não doeu!’, ser submetida à manobra de Kristeller – que é uma técnica para pressionar a parte superior do útero e forçar a saída do bebê – e muitas outras.

As consequências desses atos são dramáticas para a vida das mulheres e dos bebês. Os traumas podem ir desde rejeição ao próprio corpo, a ruína da vida sexual da mulher, complicações em sua saúde física, até impactos emocionais duríssimos, como dificuldades de se relacionar com a criança e depressão pós-parto.

O que surpreende é a falta de embasamento científico para qualquer uma dessas práticas. A perpetuação dessas ‘técnicas’ acontece única e exclusivamente por conta da cultura de submissão da mulher e de maus tratos à gestante e parturiente. A manobra de Kristeller, por exemplo, é coibida pelo CRM e pelo COREN; já a episiotomia é uma prática corriqueira no Brasil, embora não haja qualquer evidência científica que prove sua necessidade, além de não poder ser feito sem a autorização das mulheres. Isso sem contar o evidente caráter misógino dos comentários e xingamentos frequentemente ouvidos pelas parturientes.

A gravidade desses casos é tão grande quanto a naturalização dessas violências. É, aliás, raro conhecer uma mãe que nunca tenha passado por situações como essas, mas que nem se perceba como vítima de violência. É por isso que a nomeação dessas práticas como violência obstétrica é tão importante: isso garante o reconhecimento do problema, possibilita a conscientização e o incentivo da autonomia da mulher, provocando inclusive a responsabilização dos profissionais e instituições. Abandonar a nomenclatura usada inclusive pela OMS é um imenso retrocesso e vai dificultar ainda mais o combate a essas práticas.

O Paraná publicou em novembro de 2018 a Lei Estadual n. 19701/2018, que define os direitos da gestante e da parturiente, além de estabelecer que as denúncias pelo descumprimento da Lei podem ser feitas nas ouvidorias da Secretaria de Estado da Família e Desenvolvimento Social ou da Secretaria de Estado da Saúde, no Ministério Público Estadual ou através do disque-denúncia 181. A Lei segue em vigência e as denúncias precisam ser feitas, exigindo a responsabilização dos profissionais e das instituições pelas violências praticadas contras as mulheres.

Além disso, é fundamental ajudar na divulgação dos direitos da gestante e parturiente, como o direito a realizar um plano de parto e a Lei do Acompanhante (Lei n. 14.824/2016). É válido também consultar se em sua cidade já tem uma Lei de Doulas, se há grupos de apoio, rodas de conversa sobre parto humanizado, etc. Fortalecer essa rede de mulheres faz uma diferença enorme.

A violência obstétrica não é um ato isolado e ‘não intencional’. Ela revela uma das violências mais cruéis contra as mulheres e precisa ser reconhecida, combatida, por meio de políticas públicas de reconhecimento da autonomia, dignidade e direitos das mulheres.

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