Tuyo: conheça mais da banda paranaense que foi indicada ao Grammy Latino

Em entrevista, Lio Soares fala sobre representatividade para os "não-catalogados"

O Grammy Latino divulgou na terça-feira (28) a lista de concorrentes à 22ª edição do prêmio. Entre os indicados na categoria “Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa” está a banda Tuyo, de Curitiba, com o disco “Chegamos Sozinhos em Casa”. Em junho, quando o álbum foi lançado, nossa repórter Jess Carvalho entrevistou a banda. Confira abaixo a conversa.

A banda paranaense Tuyo acaba de lançar um novo disco. “Chegamos Sozinhos em Casa” é o terceiro, mais maduro e dançante trabalho de Lio, Lay Soares e Machado. Ele nasce após o EP “Pra Doer” (2017) e o disco “Pra Curar” (2018), que ganhou repercussão internacional. 

A primeira parte do novo álbum tem nove faixas e já está disponível nos principais serviços de streaming. As novidades são muitas, a começar pela produção de Lucas Silveira, Janluska, jvck e Bruno Giorgi. Também há feats com Jaloo, Luccas Carlos, Jonathan Ferr e o próprio Lucas, conhecido pela Fresno. A promessa é que a segunda parte seja lançada ainda este ano.

Durante uma das primeiras horas da manhã do último feriado, conversei com a Lio por telefone e fizemos juntas um passeio pela história da Tuyo. Ela me atendeu animada e começou o bate-papo dizendo que estava bem – apesar da pandemia e das chacinas – porque tomava café da manhã com um teto sobre sua cabeça. Falamos de música, representatividade e da ascensão do grupo dentro do “não-lugar” que ocupa no cenário musical brasileiro.

Jess: Quando nos conhecemos, em 2016, vocês ainda moravam meio em Curitiba, meio em Londrina. Depois vieram todos os três pra Curitiba, é isso?

Lio: Eu e o Jean começamos a viver juntos em Curitiba em 2013 ou 2014, quando ainda éramos um casal. Já não somos mais há dois anos. Mas morou tanta gente naquela casa… Inclusive a Lay. Sei que em algum momento nós conversamos, os três, e concluímos que estávamos trabalhando demais e precisávamos de uma folga. Na época, a gente saía pra tocar com a Tuyo e voltava pra casa falando de quê? De trabalho! 24 horas por dia. Todo mundo se amava, mas a Tuyo começou a crescer, a gente olhou pro orçamento e disse: “por que não? De repente a gente pega uns apartamentos baratinhos, um perto do outro, continua convivendo e dá uma sensação de que subimos de classe econômica.” 

Os primeiros trabalhos de vocês, “Pra Doer” e “Pra Curar”, foram criados nesse período?

Sim. A gente vivia junto porque se amava e conseguia guardar uma nota pra colocar a Tuyo pra funcionar. Foi só assim que eu consegui largar meu emprego. Quando eu fiz a conta pra ver se a gente ia conseguir viver só da banda, considerei um aluguel. Só que o “Pra Curar” tomou uma dimensão 50 mil vezes maior do que eu esperava. Aí eu pensei: se a gente não tem dinheiro pra tunar a banda, pra comprar instrumento caro, então vamos investir em nós. A gente tocava desesperadamente naquela época… Num ritmo que hoje, que eu tô em casa, julgo um pouco insalubre. Mas não sei. Acho que quando voltar eu vou fazer o triplo, rs. Tô com saudade.

A mudança para apartamentos separados veio quando?

No segundo semestre de 2019. Eu sinto que foi pra explorar esse novo lugar de parar de passar perrengue. Sabe aquela coisa de abrir a geladeira pra ver o que tem e fazer uma grande macarronada? Eu queria fazer um peixe pra mim, sei lá. Todos nós estávamos cansados daquele espírito de república. Cada um queria ter o próprio ritmo. Parece besteira porque a gente não acessa essas oportunidades de classe média alta de decidir a rotina. Quem decide a rotina do trabalhador é o empregador, né? A hora que acorda, pra onde vai, enfim. Eu sinto que pra nós foi um processo de entender que era possível ascender socialmente tomando posse da possibilidade de morar só. E aí foi bem bonito, a gente super se ajudou. Eu e a Layane fomos morar no mesmo prédio, o Jean umas quadras pra cima. Era uma delícia participar da decoração da casa um do outro. A Lay me deu uma planta e um umidificador. Eu dei uns cartazes e umas fotinhas pra ela. Nós demos um tapete pro Jean. Que fase deliciosa, parecia três velha, rs. Aí veio o inferno da pandemia.

Foto: Juh Almeida

Foi nessa fase que o novo disco surgiu?

Isso! A gente escreveu numa sentada, foi pro Rio de Janeiro e gravou. Voltou pra Curitiba, gravou mais… Trabalhamos demais em janeiro e fevereiro de 2020. Quando estávamos na última voz, eu lembro de sair do estúdio cansada, suada, falando: “gente, acabei, mas queria gravar umas coisas extras, será que a gente não pode ficar no estúdio brincando?” Aí o dono do estúdio ligou dizendo que tinha acabado de sair a notícia do lockdown em São Paulo. Foi uma coisa meio: “é pandemia, vocês vão ter que voltar pra Curitiba e não tem ônibus.” Aquela sensação de apocalipse… A gente não queria mais relar no portão, queria comprar uma roupa de saco. Que viagem. Voltamos de carro alugado e foi cada um pra sua casa. Ficamos semanas sem nos ver. 

Então o disco ficou na gaveta durante um ano inteiro?

UM A-NO! Era pra ter sido lançado em maio do ano passado, mas eu falei: “meu Deus, esse disco tem coisas tão duras, tão difíceis… Ele vai ganhar outra cara.” Ele foi um disco pensado para o palco – e de repente a gente não podia mais tocar. Quem ouve pela primeira vez, sem conhecer o nosso trabalho, pensa que eu tô louca, mas comparado aos nossos demais trabalhos, esse é o mais upbeat. Além disso, o desafio mudou, né? Não adiantava ficar se preocupando com o disco se a gente tinha uma equipe inteira pra se preocupar… Como fazer para sustentar a Tuyo? A gente tinha dez shows marcados e todos caíram… Passamos o ano reorganizando a casa. 

Eu vi que você tá morando em São Paulo. Como isso aconteceu?

Foi pra fazer freela, né? A coisa apertou. A Tuyo não precisou abrir mão de ninguém da equipe, mas foi bem exaustivo. Passei o ano trancada lá no apartamento em Curitiba e em dezembro surgiu a oportunidade de fazer uma propaganda. Vim de mala e cuia. Agora os meninos estão aqui por causa do lançamento, mas eles ainda moram em Curitiba e vão ficar por um tempo antes de virem pra cá, se for preciso vir pra cá. 

Vocês vêm de uma família cristã, com um pai pastor. Eu me peguei lembrando disso enquanto ouvia “Tem Tanto Deus”. Faz parte desse processo de adultecer olhar criticamente pra essas raízes?

Eu acredito muito que esse disco é um recorte de um período em que a gente conseguiu sair desse vórtice maluco que é se mover a fim de sobreviver. Não dava pra tempo pra refletir, a gente só ia repetindo porque tinha pressa de terminar a faculdade e conquistar autonomia. A gente mal pensava no querer em si, só na hora de comprar um chocolate. Tivemos muitos conflitos raciais com amigos dos quais tomamos distância por conta da política. Isso não é particularidade nossa, todo brasileiro passou por algo parecido. Acho que foi tudo muito passional. É engraçado esse disco ter esse caráter catastrófico antes mesmo da pandemia, porque todos nós já estávamos muito cansados de discutir a própria existência, no que implicavam as trocas de poder, como refletiam no nosso universo particular… No “Pra Doer” e no “Pra Curar”, tudo foi escrito durante os acontecimentos. O “Chegamos sozinhos” toma uma certa distância. “Tanto Deus” fala, sim, de cristianismo ocidental e dessa coisa da fé romantizada. Fala muito sobre o direito de não acreditar em nada. Quando eu percebi que já não tinha mais muitas conexões com a fé cristã, eu lembro de ter sido muito questionada pelos amigos a respeito de uma nova fé. Vinham convites, por exemplo. Eu perguntava: “nossa, mais deuses? Chega, pera aí, agora que eu posso dormir no domingo? Não!” Além dessas questões relacionadas à espiritualidade, acho que essa música fala muito da relação íntima que a gente tem com a culpa. Independentemente de que corrente religiosa você abraça, é impossível não estar socialmente submetido a uma lógica punitivista. Eu estava cansada. Mesmo tendo abandonado a igreja, ela seguia comigo, porque eu tenho boleto pra pagar, porque os meus relacionamentos precisam ser vigiados pra que eu não replique essa lógica dentro deles… É uma lógica que ultrapassa as paredes das igrejas, ela tá impregnada na maneira como a gente se organizou enquanto sociedade. 

Eu vi, ao longo dos anos, vocês falando mais abertamente de racismo. Como vocês têm se sentido sobre esse lugar de representatividade?

A gente entende, nas nossas conversas, que existe um conjunto interessante que atinge muitas faces desse tema. Existem artistas que se posicionam como catálogos, colocando na lírica e na postura termos bastante literais, dividindo conhecimento acadêmico e ancestral a respeito do que foi feito da população negra brasileira, de onde ela vem, pra onde ela vai… Outros artistas pensam na pessoa negra que é trans, na pessoa negra queer, na pessoa negra gorda… Eu entendo a Tuyo como parte de uma categoria artística que tenta desachatar a imagem da pessoa negra. Eu sinto que a estratégia para obter poder sobre um grupo de pessoas é sempre descaracterizá-las como humanas. Fica mais fácil dormir em paz enquanto algumas pessoas estão sendo assassinadas se elas não são tão humanas quanto você. A gente não entra em colapso sabendo que enquanto a gente conversa estão invadindo algum lugar e assassinando muitíssimas pessoas a troco de nada, por conta da cor da pele. Isso porque foi feito um trabalho, ao longo de séculos, no intuito de animalizar essas pessoas. Quando alguém entra num condomínio de luxo e mata muita gente, o país se compadece porque aquelas são pessoas com sentimentos, vidas, filhos… É bastante contemporâneo o movimento que atribui alma e complexidade a pessoas negras, gordas, PCDs e afins. Acho que o nosso papel é, a longuíssimo prazo, o de desachatar as possibilidades pra nós. Há dez anos, a minha única possibilidade era a de me aliar a uma lógica MPBista. Com a Tuyo, a Luedji Luna, a Liniker, a gente consegue ampliar o que se pensa a respeito da pessoa negra.

Vocês reivindicam esse espaço do sentir já há alguns anos…

Sim, desde “Pra Doer” a gente repete as mesmas coisas, dizendo: “eu sou complexa, eu sinto mais do que a dor da morte ou da fome. Eu me apaixono, eu rompo com as minhas paixões, eu sou traída, eu traio. Eu sou tão complexa quanto qualquer mulher branca.” Isso não se contrapõe a outros discursos que se preocupam com o genocídio da população negra. São discursos que se completam, diferentes estratégias que, combinadas, podem resultar no que a gente quer: a equidade de direitos. Eu acredito no papel desse tipo de lírica para providenciar que a gente não seja mais assassinado. Tem gente trabalhando nas urgências e tem gente trabalhando nos prolongamentos. Nós da Tuyo, enquanto indivíduos, trabalhamos muito nas urgências. Combinados, a gente gosta de trabalhar nos prolongamentos e entregar, poeticamente, complexidade para pessoas negras. 

E a parceria com o Lucas Silveira, como aconteceu?

Já vínhamos num estreitamento de amizade desde que colaboramos com o disco da Fresno. A gente trocava mensagens, se curtia, ia à casa do Lucas tomar os cafés estranhos dele, conversar sobre música, sobre vida, ele nos dava alguns conselhos… Eu ainda nem me acostumei com o fato de que eu posso chamar o Lucas de amigo, isso é muito bonito. Os temas que a gente trata na Tuyo, é claro que vieram de uma influência da Fresno também, apesar de eles (os músicos) virem de outro lugar e morarem em outros corpos. Eu sinto que até na população branca a musculatura do sentir está atrofiada. Eu acredito que essas projeções de lógicas de poder vêm daí, dessa anomalia social de não poder sentir as coisas. Enfim… Essa aproximação com o Lucas ainda vai render muita coisa. 

Vocês pensam em novos projetos juntos?

A gente não parou de trabalhar desde o disco. Sigo escrevendo com ele, fazendo planos pro futuro… Espero que essa parceria se estenda até a gente cansar de fazer música. O Lucas é muito gentil, é fácil trabalhar com ele. A Tuyo é um grupinho muito fechado. Somos nós três pra vida. O tipo de elo que a gente tem não se vê muito por aí. Entrar nessa nossa dinâmica de relacionamento é um desafio pra todo mundo que se aproxima, porque a gente tem o nosso humor peculiar… Sabe quando você entra num grupinho e precisa pegar o jeito da coisa? Parece que o Lucas nasceu no meio da gente. Tudo aconteceu muito naturalmente e ele trouxe contribuições muito valiosas. “O Jeito é Ir Embora” soa tão parecido, mas tão diferente porque apresentando novos timbres, novas formas de fazer música, entupindo de sintetizadores – que era uma coisa que a gente sempre quis e nunca conseguiu manobrar – ele ainda assim, enquanto admirador da banda, conseguiu preservar os nossos registros. Na hora de dirigir voz, ele já sabia o que a gente sabia e gostava de fazer. Foi uma manteiguinha porque ele conhecia a Tuyo.

E agora, como é olhar pro disco pronto?

Eu sinto que, pela primeira vez, a gente teve tempo de digerir um disco antes de ser lançado, porque ficamos um ano com ele em casa reouvindo, analisando, caçando defeitos, tentando entender o que a gente podia ter feito diferente… Mas a gente não quis mudar nada. Poxa, se é um retrato daquele período, vai ser um retrato daquele período. O tempo vai passar, não tem o que ser feito. Eu vou entender isso com o tempo, mas espero que a gente tenha conseguido não jogar num campo muito seguro nem negar tudo o que fez. A gente queria que soasse como um desses ciclos que a gente vive. Você olha pra adolescência e vê outra pessoa, mas a essência do seu caráter ainda está lá. A gente muda mas ainda é a gente, sabe como? Eu desenho essas metáforas, mas ainda estamos falando de um disco. O Jean conseguiu fazer desenhos rítmicos que são novos mas ainda se relacionam com a gente. Ele tem uma maneira muito especial de manobrar o dedilhado no violão e essa maneira especial se replica quando ele desenha os beats, as células rítmicas. Apesar de termos muitas colaborações, toda a espinha dorsal foi desenhada pela gente. Apresentamos aos produtores canções desenhadas. O que eles fizeram foi redesenhar os timbres e reorganizar os arranjos, mas a coisa do disco upbeat foi a gente que estabeleceu, a presença maior do baixo é coisa nossa… Houve um baita diálogo rico a ponto de eles serem livres pra desenvolver cada um a sua linguagem, mas dentro do escopo do que é a Tuyo. 

No release que recebi, a assessoria de vocês menciona um “não-lugar” que vocês ocupam no mercado da música. Por que vocês interpretam assim?

Guria, que pergunta maravilhosa. Eu lembro de um dia, depois que a gente já tinha se mudado, em que a gente foi à casa do Jean pra trabalhar e eu falei:” cara, você já reparou como agora tem tanta gente interessada em fazer parte da nossa crew e a gente passou a vida inteira tentando fazer parte de algum grupo sem conseguir?” Sempre tem um personagem, né? Se não o preto, a pessoa gorda, o chaveirinho queer… A gente conhece esse papel social pro qual a gente foi empurrado. Na política também. É claro que a gente se identifica com a esquerda, quer distribuição de renda, quer ter direitos… Mas eu olho pros candidatos e são todos homens brancos. É o mais próximo que a gente tem de ter nossos direitos garantidos e ainda assim é muito distante. Eu sou super Lula 2022 porque preciso me livrar desse inferno, mas ele é um homem cis-hétero branco e já é um senhor. Eu penso: alguém me arruma uma Dandara aí, por favor, sabe? 

Isso se reflete na música que vocês fazem.

Sim, estranhamente essa lógica não-identitária perseguiu a gente na música. Dificilmente alguém vai conseguir dizer pra você assim: “a Tuyo é uma banda de rock nacional, viva o rock nacional” ou “a Tuyo é uma banda de pop, não vejo a hora de fazerem um feat com a Luísa Sonza.” Ninguém sabe dar nome pra gente, a gente também não sabe. Antes era uma preocupação, hoje a gente pensa que gênero acabou de todas as formas. Todos os não-catalogados estão nesse território que flutua. E de tanto sermos empurrados pra fora de grupos, eu acredito que o nosso novo lugar é a fronteira. 

E vocês estão agregando gente, rs?

Nós sabemos que nós não estamos sozinhos nessa situação e eu sinto que o disco é uma espécie de símbolo territorial desse não-lugar, para que as pessoas possam pertencer a algo, ainda que metafórico, ainda que abstrato. A primeira parte do disco tem essa característica geográfica bem marcada. A gente já abre com um lugar no mapa pra ser materializado no imaginário porque estamos falando de território, de lugar pra quem nunca teve lugar. É no meio da estrada? É no meio da encruzilhada? Foda-se, é nosso. Compramos um terreninho e quem estiver sem casa pode vir. 

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