Três poemas de Ocean Vuong

Você provavelmente ainda não ouviu falar de Ocean Vuong. Mas você provavelmente ainda vai ouvir falar de Ocean Vuong. Dificilmente há hoje outro poeta tão jovem e tão badalado no mundo de língua inglesa. Nascido no Vietnã, Ocean mora nos […]

Você provavelmente ainda não ouviu falar de Ocean Vuong. Mas você provavelmente ainda vai ouvir falar de Ocean Vuong. Dificilmente há hoje outro poeta tão jovem e tão badalado no mundo de língua inglesa.

Nascido no Vietnã, Ocean mora nos Estados Unidos. Migrou aos seis anos depois de passar um ano num campo de refugiados. Foi a primeira pessoa alfabetizada na família.

Aos 30 anos, já ganhou o prêmio T.S. Eliot. Seus livros estão sendo traduzidos em vários países – e foi assim que eu o conheci: com o convite da editora Âyiné para traduzir seu Céu Noturno Crivado de Balas.

É dessa tradução que saem os três poemas abaixo, que dão uma ideia do que o garoto está fazendo. E, neste ano, seu primeiro romance deve sair. No Brasil, quem publica é a Rocco.


Limiar

No corpo, onde tudo tem seu preço,
              eu era um mendigo. Ajoelhado,

olhava, pela fechadura, não
              o homem no banho, mas a chuva

a atravessar seu corpo: cordas de guitarra a
                estalar sobre ombros em forma de globo.

Ele cantava, e é por isso
             que eu lembro. Sua voz

me preenchia até a medula
             como um esqueleto. Até mesmo meu nome

se ajoelhava dentro de mim, pedindo
                para ser poupado.

Ele cantava. É tudo que lembro.
                Pois no corpo, onde tudo tem seu preço,

eu estava vivo. Eu não sabia
                que havia motivo melhor.

Que certa manhã meu pai ia parar
                — potro negro em tempestade —

& tentar escutar minha respiração contida
                atrás da porta. Eu não sabia que o custo

de entrar numa canção — era perder
                o caminho de volta.

Por isso entrei. Por isso perdi.
                Perdi tudo com meus olhos

bem abertos.


De cabeça

                                               Không cí gì bang com voi cá.
                                               Không cí gì bang má voi con.

Você não sabe? O amor de mãe
                                               ignora o amor-próprio
                               como o fogo ignora
os gritos sonoros
                daquilo que queima. Meu filho,
                                               mesmo amanhã
você vai ter o hoje. Você não sabe?
                               Alguns homens tocam seios
                                               como tocassem
                o topo de crânios. Homens
que ultrapassam montanhas
                levando seus sonhos, seus mortos
                                                                              nas costas.
Mas só uma mãe pode andar
                                               com o peso
de um segundo coração que bate.
                                                               Garoto tolo.
                Talvez você se perca em todo livro
mas jamais vai se esquecer de si
                                               como deus esquece
as próprias mãos.
                               Quando alguém te perguntar
                                               de onde você é,
responda sempre que o teu nome
                virou carne na boca banguela
                                               de uma mulher da guerra.
Que você não nasceu
                               que você rastejou, de cabeça —
rumo à fome dos cães. Meu filho, responda
                                               que o corpo é uma lâmina que se afia
                               cortando.


Destruidor de lares

& nós dançávamos assim: vestidos brancos das mães
que transbordavam nossos pés, o fim de agosto

colorindo as nossas mãos de um rubro escuro. & nos amávamos assim:
com vodka & uma tarde no ático, os teus dedos

entre os meus cabelos — os meus cabelos em fogo. Cobríamos
o ouvido e o chilique do teu pai se transformava

em pulsações. Quando os nossos lábios se tocavam o dia se encerrava
num caixão. No museu do coração

há duas pessoas sem cabeça construindo uma casa em chamas.
A espingarda esteve sempre lá sobre a

lareira. Sempre uma outra hora para matar — só para implorar
a um deus que nos devolva. Senão o ático, o carro. Senão

o carro, o sonho. Senão o menino, as suas roupas. Se não vive,
desligue o telefone. Porque o ano é uma distância

que viajamos em círculos. O que quer dizer: nós dançávamos
assim: sozinhos em corpos que dormem. O que quer dizer:

nós nos amávamos assim: uma faca na língua se transformando
em uma língua.


Sobre o/a autor/a

3 comentários em “Três poemas de Ocean Vuong”

  1. MARCELO CARLOS DA SILVA

    Nossa que maneira linda e delicada de falar de coisas brutas da vida, do desumano, do humano, do doce e do amargo.
    Sua forma poetica cura a história dos tempos idos fazendo desenhar um novo céu cravado de letras bem ditas.
    Cheguei aqui via o Mia Couto que falou muito bem de Ocean Vuong.
    Bravo! Inspirador!
    @pe.marcelo.bh

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