Série “A Escada” argumenta que a verdade, às vezes, é inalcançável

Produção da HBO Max se inspira na história real de mulher que morreu ao cair da escada dentro casa, deixando o marido como suspeito

Uma mulher cai escada abaixo e se machuca gravemente. O marido liga desesperado pedindo socorro, diz que ela ainda está respirando e desliga. Logo depois, liga novamente dizendo que ela parou de respirar. Quando as equipes de socorro e a polícia chegam, a mulher está morta, as paredes no fim da escada cobertas de sangue, o marido atordoado. A casa se transforma em uma cena de crime.

A série “A Escada”, disponível na HBO Max, é uma dramatização de um caso real: a morte de Kathleen Peterson, ocorrida em 9 de dezembro de 2001. Ela era uma engenheira de 48 anos que ocupava o cargo de executiva na Nortel Networks. Kathleen morreu na escada de sua casa em Durham, na Carolina do Norte, quando apenas ela e o marido, o escritor Michael Peterson, estavam no local.

Não é a primeira produção importante sobre o caso. Em 2004, o documentário “The Staircase” estreou no Canal+, nos Estados Unidos. A produção, de origem francesa, acompanhou o caso principalmente a partir do ponto de vista da equipe de defesa de Michael Peterson, indiciado pela morte de Kathleen. O documentário foi relançado pela Netflix com novos episódios, filmados depois que Peterson deixou a cadeia.

Tanto o documentário quanto a série circulam em torno da pergunta essencial: como Kathleen morreu? Michael Peterson a matou ou foi um acidente?

Na série da HBO, que explora a vida de Kathleen nos meses anteriores à morte assim como os desdobramentos da acusação contra Michael, a história vai ganhando novos contornos e detalhes. A narrativa leva o espectador a transitar entre acreditar em Michael (foi um acidente) ou concluir que Kathleen foi morta.

(A versão da HBO também tem a vantagem de contar com Colin Firth no papel de Michael Peterson, Toni Collette como Kathleen e a participação de Juliette Binoche como editora do documentário e namorada de Michael quando ele já está na prisão.)

Michael Peterson é um homem complexo. Colunista político num jornal local, além de autor de ficção, Peterson está concorrendo à vaga de vereador na cidade de Durham, o que traz novamente à tona uma de suas principais mentiras. Em uma eleição anterior, Michael alegou ter uma condecoração por bravura por sua participação na Guerra do Vietnã, mas foi desmentido.

Não é a única mentira dele. Peterson também é bissexual e faz sexo regularmente com homens em saunas e banheiros públicos. Quando exposto, ele nega ter traído a esposa, só para depois ser desmentido mais uma vez.

Claro que, nos EUA do início dos anos 2000, a sexualidade de Peterson foi amplamente explorada no tribunal, apesar de ele alegar que Kathleen sabia e entendia suas atividades sexuais fora do casamento.

Assistir à série (cujo último episódio foi ao ar na última quinta-feira, dia 9) é ficar sempre com uma sensação de incompletude tão familiar a quem trabalha com a busca da verdade. Apesar de todos os especialistas, tentativas de reproduzir o suposto crime e até um vizinho obcecado que conjurou uma complexa teoria sobre uma coruja e um ataque, só duas pessoas sabem o que aconteceu com Kathleen: ela e o marido.

Ela está morta e ele é um mentiroso egocêntrico. Mas isso não quer dizer que a culpa dele esteja plenamente estabelecida.

Difícil, não?

Exercício intelectual

A experiência de ver ambas produções sobre o caso acaba sendo um exercício intelectual interessante. Você é convencido de que Kathleen foi assassinada pelo marido, só para depois duvidar que seja esse o caso e, por fim, se convencer de que foi um acidente. Mas não demora muito e já começa a desconfiar de que é Michael o assassino.

Foi uma coruja que a atacou enquanto ela arrumava decorações de Natal? Ou os remédios e o álcool que ela consumiu pouco antes que a fez cair escada abaixo, batendo a cabeça contra o batente e depois falhar em conseguir pedir ajuda?

Esse desconforto, essa incapacidade de chegar a uma resposta definitiva é, óbvio, desconcertante. Mas é justamente um desconforto que a vida moderna nos impõe, não é mesmo? Muita informação não é o mesmo que informação correta ou a verdade.

Mais dúvidas

Nesse sentido, se submeter à excelente produção da HBO e ao documentário na Netflix é nos educar a duvidar de nós mesmos, da imensa capacidade intelectual que temos de nos convencer de algo, mesmo que outras evidências questionem nossas conclusões. Quando percebemos a dúvida, junto dela vem a percepção de que, por um momento, a certeza nos permitiu uma autoridade sobre os fatos que parecia indestrutível, só para sumir sem deixar rastros.

Numa era em que informações de má qualidade ou mesmo mentiras vendidas como verdade são parte da rotina de todos nós, esse exercício destrói a arrogância de quem se acha capaz de sempre saber o que é verdade e o que não é.

Onde assistir

A serie “A Escada” tem oito episódios e está em cartaz na HBO Max.

O documentário “The Staircase” tem 13 episódios e está sendo exibido pela Netflix.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima