Rejane Faria surge no palco com a força de um terremoto em “Tragédia”

Atriz interpreta Antígona, da tragédia de Sófocles, numa peça que percorre um território gigantesco desde a origem da humanidade

[playht_listen_button inline=”yes” tag=”p”]

A campainha toca de novo, toca várias vezes, e o teatro do Sesc da Esquina fica no escuro. É só o começo da “Tragédia”, uma peça do grupo Quatroloscinco em cartaz na principal mostra do Festival de Curitiba 2023. Então uma luz fraca ilumina a beira do palco e aparecem dois homens diante de uma parede de engradados alaranjados. 

Os dois discutem numa língua que não é português (lendo a ficha técnica da peça, descobri que falavam guarani). Não dá para entender o que dizem, mas fica claro que a conversa é tensa e termina com um camarada dando de dedo na cara do outro. 

É uma introdução algo estranha, que deixa o público perplexo (pelo menos a parte do público que não entende guarani) e antecede uma sequência em que os atores vão desmontando a parede de engradados, deixando pilhas espalhadas pelo palco, ao som de um lamento meio operístico que faz pensar em “La Mamma Morta”, de Maria Callas. A perplexidade do público continua.  

Atrás dos engradados está o ator que canta essa trilha sonora e, no centro do palco, uma mesa de bilhar. Ao fundo, duas portas de ferro suspensas lado a lado, como as de um estabelecimento comercial fechado, servem de tela de projeção.

Na “Tragédia”, o jogo não é só um jogo. (Foto: Annelize Tozetto/Divulgação)

Com a parede de engradados desfeita, os engradados espalhados e o fim do lamento operístico, os três atores pegam seus tacos e cercam a mesa de bilhar, onde começam a falar do jogo. 

No começo, parece que estão falando apenas de sinuca, mas logo vão surgindo pistas de que esse “jogo” é algo maior. Bem maior. “Jogo não é brincadeira”, diz o sujeito que explica as regras. Frases-chave são recorrentes na conversa e elas falam sobre como não se pode matar a branca (a bola branca), sobre respeitar as regras do jogo, sobre como o jogo funciona. “A branca é sempre branca?”, pergunta o sujeito que não entende nada de sinuca. Mas fica claro, a essa altura, que não se trata de sinuca. Ainda assim, ao que tudo indica, a branca é sempre branca.

Com a metáfora do jogo, a “Tragédia” consegue abarcar temas urgentes, fala de povos originários, de fake news, de injustiças cometidas por militares, da origem da humanidade, de homens e mulheres trans, de eleições. É um escopo gigantesco e os atores Assis Benevenuto, Ítalo Laureano e Marcos Coletta lidam com ele como se estivessem de fato num bar ao redor de uma mesa bilhar. Isso significa que a conversa é barulhenta e provocativa, mas não chega a lugar nenhum.

Nesta cena, que abre a peça, os atores têm uma discussão em guarani. (Foto: Annelize Tozetto/Divulgação)

Rejane Faria

Na segunda parte da “Tragédia”, ocorre uma mudança. Aos poucos, os atores começam a fazer apartes para o público, falando sobre figuras da mitologia grega e sobre como elas sofreram nas mãos dos deuses.

Até que, de repente, uma personagem que havia aparecido brevemente no início da peça, numa projeção de vídeo nas portas de ferro (“Ai de mim”, ela dizia), ressurge com a força de um terremoto que destrói tudo, inclusive a narrativa que veio antes dela. A atriz Rejane Faria entra em cena derrubando as pilhas de engradados, derrubando tudo, e com uma voz potente e um olhar intenso, encara o público. E desafia todo mundo.

Ela é Antígona, da peça escrita por Sófocles, a filha que Édipo teve com sua mãe, Jocasta, depois de ter matado seu pai. Ele fez tudo isso sem saber que os dois eram seu pai e sua mãe. Foi um castigo dos deuses. Quando descobriu a verdade, Édipo arrancou os próprios olhos. E a tragédia não para por aí…

Rejane Faria ganhou projeção nacional com o filme “Marte Um”. (Foto: Annelize Tozetto/Divulgação)

Antígona costuma ser associada a uma ideia de amor filial e, na história, ela fica ao lado do pai até o fim. Porém, na peça, Antígona parece representar muito mais do que amor filial. Ela é também a memória e o passado de toda a humanidade, com as barbaridades cometidas e sofridas, e que alguns tentam esquecer ou apagar. Mas não ela. Antígona está farta dessa situação e se mostra disposta a brigar, a resistir e a fazer aquilo em que acredita.

O diálogo estabelecido pela “Tragédia” do grupo Quatroloscinco com a tragédia de Sófocles é algo aberto à discussão. Já os temas do texto assinado por Benevenuto e Coletta vão da origem da humanidade até as eleições de 2022. É um território gigantesco para se percorrer e que, numa peça de pouco mais de uma hora, teve de ser sobrevoado de uma grande altitude. De fato, a experiência de ver a “Tragédia” é um pouco como olhar pela janela de um avião e sentir dificuldade para se situar na paisagem. 

Festival de Curitiba 2023

O espetáculo faz sua segunda apresentação no festival nesta terça-feira (4), às 20h30, no Teatro Sesc da Esquina. Para adquirir ingressos do Festival de Curitiba, visite o site do evento.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima