Espetáculo “O Bem Amado Musicado” mostra que não evoluímos de 1962 para cá

Montagem musicada do texto original para teatro de Dias Gomes toca em várias feridas do Brasil de ontem que ainda estão abertas até hoje, mas com a leveza do bom humor e uma performance impressionante

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Cássio Scarpin interrompe os aplausos de pé que a equipe de “O Bem Amado Musicado” recebe no Guairão após a primeira sessão do espetáculo no Festival de Curitiba. Além dos agradecimentos, ele tem algo importante a dizer: o texto escrito por Dias Gomes (1922–1999) em 1962 não foi adaptado. É a deixa para afirmar que é preciso pensar por que o tema da montagem ainda é tão atual, “(…) o teatro é para isso, é para a gente pensar”. 

O “causo” acontecido após o final da apresentação desta segunda-feira (3) serve para puxar o assunto do maior trunfo da peça. Colocar em cena a falta de escrúpulos de políticos demagogos, sob o olhar dos anos 60, é também discutir o que se enfrentou durante o último mandato presidencial no Brasil (2018–2022). Pois negacionismo, omissão diante da pandemia, fake news, machismo e atentados à cultura são tentativas de nos matar para, então, fazer um discurso verborrágico que garanta as benesses da permanência no poder (ou da volta ao poder).  

Enredo de “O Bem Amado”

Para quem não conhece o enredo que virou sucesso na TV com a adaptação para novela exibida em 1973, Odorico Paraguaçu é o personagem principal, o prefeito da cidade fictícia baiana de Sucupira, eleito graças à promessa de construir um cemitério para a população não precisar mais ir ao município vizinho enterrar seus mortos. O conflito bem humorado também mostra como a igreja se envolvia na coisa pública e o papel fundamental da imprensa para publicar as denúncias, simbolizada na trama por Neco Pedreira, dono do jornal “A Trombeta”. Conforme já foi dito, as semelhanças com a atualidade não são meras coincidências.

Muito mais que o Nino 

Quem foi ver “O Bem Amado Musicado” pensando em ver o cara que interpretou o Nino, do “Castelo Rá-Tim-Bum”, saiu surpreso. Cássio Scarpin, beirando os 60 anos, mostra um vigor e uma paixão pelo palco impressionante. Canta, dança e interpreta com talento e muita energia, é difícil tirar os olhos dele. E olha que, mesmo quando os outros atores não estão ao seu lado, tem um coreto gigante com ares de carroça ou picadeiro mambembe em cena, de onde sai a mesa que vira o gabinete do prefeito.

Quando a gente se dá conta de que o nome de Scarpin ainda vem grudado com o do papel no “Rá-Tim-Bum”, bate uma sensação de injustiça. Ele tem um currículo e tanto, são dezenas de peças de teatro, papéis na televisão e no cinema. Entre os prêmios conquistados, está um Shell de melhor ator em outra comédia musical (“Memórias Póstumas de Brás Cubas”). O gênero é a praia dele, isso explica como o artista fica gigante em cena (pessoalmente ele não parece alto) e vai até o fosso do Guairão sem medo de chegar perto do público, como interpreta com o corpo inteiro durante todo o espetáculo e até dança um tango. 

Não é só Scarpin que impressiona no elenco. Marco França, que também assina a direção musical, transforma seu corpo para fazer o matador inspirado nos cangaceiros Zeca Diabo e desperta o riso ao lado da dúvida na plateia (não presta, mas até que o cabra presta um pouquinho…). Já Eduardo Semerjian, no papel de Dirceu Borboleta, é um bufão pacato tão ingênuo que, em certas horas, nem desperta nossa piedade. Vale registrar aqui os pontos ganhos pelo diretor Ricardo Grasson e por Katia Barros e Tutu Morasi na direção de movimento e coreografia. 

Músicas

A trilha criada pelo maranhense Zeca Baleiro e pelo pernambucano Newton Moreno acertou o compasso ao ajudar a localizar a história num Nordeste que exala brasilidade (tem aquele tango, contudo cai bem porque está casadinho com a cena). Não sei diferenciar o baião do xote ou do xaxado, mas é evidente que as músicas ficam mais ou menos por ali. Elas dão ritmo para a passagem do tempo em cena junto com a iluminação, e resolvem muitos pontos da peça (como quando é tocada uma composição próxima de um ponto de umbanda questionando, novamente, o devido lugar da Igreja). 

Cacos 

Como não se trata de uma adaptação, o cômico vem da ironia do texto, dá para dizer do sarcasmo inclusive. Tem pausas dramáticas que garantem o duplo sentido na fala do prefeito e algumas tiradas que fazem o riso soar alto na plateia de hoje. Contudo, uma se perdeu, era uma piada com o “Jairzinho”. Talvez não tenha sido por falta de graça, nem porque em mínimos momentos o timing da comédia escapou da montagem, mas porque a mixagem do som atrapalhou.

Não foi possível entender muitas das letras das músicas e até das falas. Scarpin era quem se ouvia limpo, com perfeição, o que não se repetia nos outros em cena. Os instrumentos musicais estavam altos e com o som brilhante, mas as vozes microfonadas estavam abafadas. Por isso, mal deu para ouvir aquela piada na plateia. Em um espetáculo tão bacana, que tem mais para mostrar do que só entretenimento e faz pensar com o toque da leveza do humor bem inteligente, isso foi uma pena. 

“O Bem Amado Musicado”

O espetáculo faz sua segunda apresentação no festival nesta terça-feira (04/04), às 20h30, no Guairão. Os ingressos estão esgotados. Para outras informações sobre a programação do Festival de Curitiba, visite o site do evento ou clique aqui.

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