O futebol é o campo da misoginia

O momento mais feliz da carreira de Jenni Hermoso, da Espanha, quando a atacante recebia a medalha de campeã do mundo, foi marcado por um beijo forçado por parte do dirigente

A Copa do Mundo acabou no último domingo, 20, com a Espanha campeã. E a programação esportiva da semana deveria girar em torno dos lances capitais, da análise tática, dos replays do gol do título, enfim: sobre o que aconteceu dentro das quatro linhas. Mas o futebol envolve muito mais que as quatro linhas, e abrange inclusive a misoginia. E, por isso, a pauta atual se tornou o assédio cometido pelo presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luis Rubiale.

O momento mais feliz da carreira de Jenni Hermoso, quando a atacante recebia a medalha de campeã do mundo, foi marcado por um beijo forçado por parte do dirigente. Assédio televisionado, para quem quisesse ver. A jogadora, já no vestiário, afirmou não ter gostado e questionou “o que eu poderia fazer?” — sentimento mais do que comum em situações de violência como esta. Mas o caso não parou por aí e, durante a semana, Rubiale pediu que Hermoso gravasse um vídeo com ele, para atenuar a situação. Pedido negado, obviamente. A pressão cresceu e, na quinta-feira, a imprensa espanhola chegou a noticiar que o presidente renunciaria ao cargo, com pronunciamento marcado para esta sexta-feira.

Eis que, na Assembleia Extraordinária, em frente a homens e mulheres da federação, o dirigente foi explícito: “Vocês acham que tenho que me demitir? Vou dizer algo: não vou me demitir! Não vou me demitir! Não vou me demitir!”. A repetição e o tom enfático demonstraram a voracidade de Rubiale em demarcar uma posição: o futebol é um espaço de homens e para homens.

E o discurso traz outros trechos para corroborar essa lógica. O dirigente falou que a pressão não era uma ânsia por justiça, mas um “assassinato social”, de que ele seria vítima. Acusou as críticas de serem feitas por “falsas feministas, um mal para o país” e que não deram os parabéns pela conquista da Copa. Aliás, Rubiale fez questão de enfatizar como os homens foram fundamentais para o título mundial, ao enaltecer o técnico Jorge Vilda e outros membros da comissão: “Jorge! Também havia homens ali. São campeãs as 23 jogadoras, mas você não é campeão? Carlos, treinador de goleiro, não é campeão? São campeões também! Havia homens e mulheres, um grupo. O plural masculino na Espanha inclui tanto as mulheres como os homens. E vamos seguir usando ‘campeões’ para falar de homens e de mulheres”.

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A defesa do uso do masculino como universal demarca a hegemonia deles e nos lembra como a língua está longe de ser neutra. Além da necessidade de querer incluir os homens em toda e qualquer conquista, sempre nos holofotes, em detrimento das mulheres. Para completar o bingo do machismo, Rubiale ainda deslegitimou a vítima, ao alegar que o beijo em Hermoso foi “espontâneo, mútuo, eufórico e consentido”, e alegou que a jogadora havia iniciado o abraço. Questionou como se sentiram as mulheres que realmente foram vítimas de assédio e violência sexual, como se efetivamente fosse considerar a opinião delas. Até porque, se considerasse, bastaria ouvir a própria Hermoso: ela, junto do seu sindicato (FUTPRO), cobrou durante a semana medidas exemplares pelo assédio sofrido.

Infelizmente, Rubiale não é um ponto fora da curva. Ele é a norma. Homens ocupam a grande maioria dos cargos decisórios do futebol. E há pouco (ou nenhum) interesse desses homens em modificar esse quadro. O corporativismo masculino em prol da manutenção do esporte como algo só deles ficou muito claro quando a plateia aplaudiu de pé o discurso do presidente da Federação Espanhola. O público, aliás, incluía Jorge Vilda e Luis De La Fuente, treinador da seleção masculina.

Esse pacto garante que mulheres não sejam acolhidas no campo esportivo e que a marginalização e a violência sofridas sejam naturalizadas. Desta naturalidade, decorre a empáfia e o sentimento de impunidade de Rubiale para fazer o que fez e falar o que falou. Mas jogadoras são trabalhadoras, elas devem ter condições de trabalho dignas e não se preocupar com violência, inclusive sexual, nesses espaços. Vale lembrar que não é de hoje que as espanholas reclamam da estrutura da sua Federação e também do treinador. A despeito disso — e de algumas atletas se negarem a jogar a Copa, como protesto —, Rubiale manteve tudo como estava. O racha das jogadoras com a comissão técnica ficou explícita na Copa: as atletas foram campeãs apesar de Vilda e não por conta dele.

Ou seja, o presidente desqualifica e não se importa com as protagonistas do esporte. Ele só deveria lembrar que, sem elas, não há Seleção. E. como o mar da História é agitado, o discurso gerou um impacto enorme, que está causando mobilizações por toda parte. As companheiras de Seleção de Hermoso prontamente se manifestaram em apoio. A melhor do mundo, Alexia Putellas, decretou: “Se acabó”. Alguns jogadores também se posicionaram (ainda bem, porque o machismo é responsabilidade dos homens), como Borja Iglesias, atacante, que prometeu não vestir a camisa da Espanha até mudanças acontecerem e a impunidade não prevalecer. Dentre as brasileiras, Ary Borges, Gabi Nunes, Kerolin e Antônia Silva declararam solidariedade a Hermoso em suas redes sociais.

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Esperamos que a misoginia de Rubiales não seja perdoada. Nesse sentido, o Conselho Superior de Desportos da Espanha comunicou que prestará queixas no Tribunal Administrativo contra o presidente da Federação, pedindo também a sua suspensão. Victor Franco, um dos responsáveis pelo Conselho, dará uma coletiva de imprensa sobre a situação ainda nesta sexta-feira. Esperamos que a FIFA, na presidência de Gianni Infantino (que já falou que as mulheres precisam cobrar os homens), também tome as medidas cabíveis — assim como a UEFA, instituição da qual Rubiale é vice-presidente.

No final das contas, é triste pensar que, após uma Copa do Mundo de grande visibilidade, com quebra de recordes e jogos históricos, que elevou o futebol de mulheres a outro patamar, tenhamos que lidar com um balde de água fria tão frustrante. Infelizmente, a frase “mulher não tem um minuto de paz” é realidade: os homens ainda exercem seus podres poderes e se mobilizam, com muito afinco, para manter o futebol como o Clube do Bolinha, violentando aquelas que buscam fazer diferente.

Mas nós não sairemos daqui — e vamos derrubar toda e qualquer porta necessária para garantir este espaço.

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1 comentário em “O futebol é o campo da misoginia”

  1. Maria Lima Duarte

    Toda mudança leva tempo, mas tem tempo que nós precisamos destruir com toda força e agora.
    Matéria contundente, parabéns e seguimos.

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