Ainda repercute o caso da atriz Klara Castanho, atacada porque encaminhou seu bebê, fruto de um estupro, à adoção. Os ataques vieram, provavelmente, dos mesmos que, dias antes, condenaram uma menina de 11 anos que optou, junto com sua família, pelo aborto de um filho também gerado em um estupro.
O caso de Klara Castanho envolve outras nuances além do estupro, incluindo a irresponsabilidade criminosa de influenciadores digitais e colunistas de fofoca que vazaram a gravidez e a adoção, invadindo a privacidade da atriz e desrespeitando seu sofrimento, como anotou o jornalista Matheus Pichonelli em sua coluna no UOL.
Pelas suas características, o episódio envolvendo a menina catarinense soa ainda mais cruel, entre outras coisas, pela pouca idade da vítima e sua vulnerabilidade social.
Nem o risco de perder a vida em uma gestação precoce em um corpo ainda infantil sensibilizou as autoridades, incluindo uma juíza, que ao ampará-la e seguir a lei, decidiram submetê-la a uma sequência de novas violências, tudo supostamente em “defesa da vida”.
Como não podia ser diferente, Bolsonaro participou desse circo de horrores com um tuíte, onde condenou o aborto alegando que ele “aumentaria a tragédia”.
Me pergunto se ele manteria o discurso se, no lugar de uma criança anônima, pobre e fragilizada, quem estivesse grávida fosse a “fraquejada”, também ela, por coincidência, com os mesmos 11 anos da menina que no começo dessa semana, finalmente, teve o aborto autorizado pela justiça.
Não foi a primeira vez, aliás, que bolsonaristas atuaram para expor e impedir uma criança estuprada e grávida de abortar.
Em setembro de 2020, Damares Alves enviou uma equipe do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a São Mateus, no Espírito Santo, e chegou a agir, diretamente, para impedir uma menina de 10 anos, estuprada pelo tio, de abortar.
Na ocasião, as redes bolsonaristas, comandadas pela ativista Sara Winter, próxima à ministra Damares, vazaram dados pessoais da criança e seus familiares, ameaçados e agredidos verbalmente pela militância “pró-vida”.
Vidas que se cruzam
Duas formas de violência, principalmente, aproximam trajetórias tão distintas como as de duas menores e a de uma jovem atriz nacionalmente conhecida. E a delas a milhares de outras mulheres Brasil afora.
A primeira é o estupro. Em 2021, o país registrou 56.098 estupros – um a cada 10 minutos –, incluindo vulneráveis, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O aumento de 3,7% em relação ao ano anterior acompanha os índices de violência doméstica e feminicídio, que também cresceram durante a pandemia.
Em contrapartida, a rede de proteção governamental a mulheres vulneráveis nesse período decresceu e está, hoje, mais fragilizada e desassistida que antes da pandemia.
Para 2022, o orçamento destinado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos é o mais baixo em anos: R$ 5,1 milhões para enfrentamento à violência e promoção da autonomia, e R$ 8,6 milhões para as Casas da Mulher Brasileira.
Nos dois anos anteriores, apesar de mais poupudos, os recursos não foram executados integralmente. Em 2020, o primeiro da pandemia, Damares Alves deixou “sobrar” 70% das verbas do seu ministério destinadas a esse fim. No ano passado, apenas metade do orçamento foi executado.
A indiferença governamental é apenas parte daquilo que feministas chamam de “cultura do estupro”, expressa nas muitas formas de banalização dessa violência – temos um presidente que já disse que mulher feia não merece ser estuprada. Mas, também, no hábito, ainda tão comum, de desacreditarmos e culparmos a mulher pela agressão de que ela é vítima.
Aborto não é crime
A segunda forma de violência que une mulheres de trajetórias tão distintas, é o tratamento dado ao aborto no Brasil.
Quase sempre de fundo moral ou religioso, os argumentos favoráveis à criminalização tendem a reproduzir, tomando como verdadeiro, um cenário que não encontra sustentação em qualquer dado do real: descriminalizar o aborto não é obrigar mulheres a fazê-lo; não se formarão filas em hospitais, clínicas e postos de saúde de mulheres ávidas por abortar.
Não estamos falando de um “genocídio”, como defendem, perversamente, os “pró-vida”, verdadeiros grupos de ódio que se valem do fundamentalismo religioso para intimidar, ameaçar e agredir mesmo mulheres que abortam legalmente, inclusive vítimas de estupro de 10 anos, como fizeram em setembro de 2020.
Na prática, a descriminalização, além de tratar o tema como um direito fundamental, em consonância com a Constituição 88, retira da esfera jurídica e policial o que não deveria ser um crime, e o desloca para o seu lugar de direito: o da saúde pública.
E não se trata apenas de defender a vida e a liberdade de mulheres, especialmente mulheres negras e pobres, por muitas e óbvias razões as mais expostas e vulneráveis seja à prisão ou à morte em uma clínica clandestina.
Descriminalizar o aborto e tratá-lo como um tema e um problema de saúde muda, principalmente, a competência do Estado. Podendo falar dele abertamente, pode-se desenhar políticas públicas para, além de proteger, prevenir e mesmo evitá-lo, o que vimos acontecer em países onde ele já foi descriminalizado, caso do vizinho Uruguai.
Mas tudo isso é impensável em um país cujo presidente odeia as mulheres.
A misoginia de Bolsonaro não apenas serve de esteio e ajuda a entender o aumento da violência de gênero, das muitas manifestações machistas, principalmente nas redes sociais, notadamente contra mulheres e coletivos feministas, e de produtos midiáticos pretensamente mais “sofisticados”, como o documentário “A face oculta do feminismo”, da empresa revisionista Brasil Paralelo.
Costumes e cruzada antidemocrática
Sua misoginia está entranhada nas políticas públicas e no modo como o governo prioriza a chamada “pauta de costumes”.
E não apenas no nível doméstico. No ano passado, na ONU, o governo brasileiro ficou ao lado de países como Hungria, Rússia e Arábia Saudita, ao não aderir a uma declaração, subscrita por outros 60 países, de assumir compromissos no que se refere à saúde feminina. A justificativa? As menções à garantia da saúde reprodutiva da mulher poderiam dar margem à “promoção do aborto”.
Editada há duas semanas, uma cartilha do Ministério da Saúde sugere que “não existe aborto legal”, e que os casos em que há “excludente de ilicitude” devem ser comprovados por investigação policial. A posição do governo foi reafirmada ontem, em audiência pública convocada para discutir o tema.
Em ano eleitoral e frente às dificuldades para garantir a reeleição, é na “pauta de costumes” – além, claro, dos constantes ataques à democracia e as ameaças de golpe – que Bolsonaro se fia para manter o engajamento militante.
Uma estratégia amplamente favorecida pelo empobrecimento ainda maior do debate público nos últimos anos. Mas também pelo recrudescimento de um discurso fortalecido com a crescente moralização da política e com a reação aos avanços, tímidos, mas significativos no contexto brasileiro, das demandas e direitos das chamadas “minorias” – além de mulheres, LGBTs, negros e índios, também eles vítimas da violência bolsonarista.
A estratégia é aproveitar o estreitamento político e a crise econômica, para manipular os muitos medos decorrentes de mudanças nunca devidamente cimentadas em uma democracia, como a nossa, débil e incompleta, alimentando, diuturnamente, o temor que a ampliação e garantia de direitos ameaça a família e os “valores tradicionais”.
Em troca do apoio, da identificação e do engajamento, o governo oferece, a uma população desempregada, endividada e novamente despossuída do direito ao consumo, a ilusória segurança de que sua fé e seus valores não serão moeda de barganha, nem destruídos pelo avanço das minorias.
Bolsonaro precisa disso para manter sua cruzada antidemocrática. Sem nada de muito objetivo a oferecer, ele precisará cumprir ao menos uma das promessas que fez durante a campanha, a de legar um país embrutecido e ainda mais violento.