“No canto dos ladinos”, livro de estreia de Quito Ribeiro, faz análise do Brasil de hoje

Baiano, Quito Ribeiro provoca leitores e leitoras ao tirar narrar histórias de personagens negros de classe média no romance "No canto dos ladinos"

A primeira coisa que fiz quando comecei a ler “No canto dos ladinos” foi pesquisar sobre a palavra. Achei peculiar a escolha dela e encontrei uma entrevista de Quito Ribeiro para a Todavia, que publicou o romance, explicando o contexto.

A ressignificação da palavra foi um dos muitos acertos de “No canto dos ladinos”. A princípio, podemos entender ladino como alguém malandro. Ribeiro, na entrevista, vai além e conta que a palavra ladinos, na realidade, era designada para identificar escravizados africanos que aprendiam a falar português no Brasil. Os que não sabiam eram chamados de boçais.

Negros que conseguem usar a “malandragem” e sair do lugar de pobreza, portanto, são ladinos. Os personagens apresentados por Quito Ribeiro em sua obra de estreia são todos negros de classe média. Um deslocamento que incomoda e marca toda trama.

“No canto dos ladinos”

O romance é ambientado em Salvador, no Brasil, e tem passagens também por países europeus (imagine você, negros brasileiros na Europa).

Há três personagens principais: Cristiane, que é escritora e está numa conferência em Lyon, na França, falando do seu livro. É irmã de Mariana, outra personagem importante no romance, que por sua vez é esposa de Érico.

Personagens do livro de Cristiane também ganham capítulos para si. Um livro dentro do livro, uma técnica interessante que deixa a leitura bastante instigante.

A história dessas pessoas é costurada a partir de percepções próprias. Eles vivem em bairros ricos e têm hábitos que não são comuns – ou não são vistos como comuns – para pessoas negras no Brasil.

Quito Ribeiro

Entender o passado para compreender as consequências para as pessoas negras nem sempre é uma tarefa fácil – e às vezes pode soar complicada. Quito Ribeiro, por meio de histórias que se entrelaçam de maneira envolvente – consegue levantar essas questões sem pesar a mão e faz uma análise importante da sociedade brasileira.

“Foi bem ridícula a primeira vez que apanhei de alguém com autoridade para bater. Andava por uma área residencial exclusiva para militares. Era acostumado a andar por ali porque a filha de um milico frequentava a minha área e eu já tinha passado pela zona militar várias vezes por causa dessa amizade. Nunca tinha chamado atenção, mesmo achando ousado passar por ali. Dessa vez, contudo, estava sozinho, andando para ir à casa de um amigo que morava num prédio bem ao lado desse cercadinho residencial-militar. Resolvi cruzar a rua fechada para cortar caminho. Quando já estava perto da saída, um soldado de guarda naquele quarteirão me falou que não podia passar ali. Reagi amedrontado e disse que já estava saindo. Veio andando em minha direção e, como eu ainda estava saindo quando ele chegou, me deu uma pancada com o cassetete nas costas, na altura do rim e disse: “Sai pra lá, neguinho”. Não foi para doer muito, mas a agressão ficou. A primeira vez que apanhei de alguém com autorização para agredir”.

Dois Brasis

O trecho narrado pelo personagem Érico demonstra como o estilo da escrita de Quito deixa a leitura fluída e também dá o tom do que é discutido. Situações cotidianas para pessoas negras que dificilmente acontecem com pessoas brancas. Dois Brasis.

Quito Ribeiro é compositor e montador de produções para cinema e TV. As habilidades usadas nessas atividades fazem com que a escrita seja bastante objetiva. O livro tem pouco mais de cem páginas para contar uma história engenhosa de afirmação da negritude e discussão sobre o limbo em que vivem pessoas negras que ocupam espaços renegados aos seus por causa do racismo.

Neste momento

Outro ponto positivo são referências atuais. Baco Exu do Blues, Olodum e até mesmo o Facebook. Isso reforça a ideia de ser uma análise do agora. Tudo o que escreve Quito Ribeiro está acontecendo neste momento, com alguém, em Salvador ou Curitiba.

O livro une a consciência das personagens acerca das consequências terríveis da escravidão ao passo que os coloca num lugar privilegiado, longe da pobreza, vivendo de um jeito branco.

“No canto dos ladinos” usa a união das histórias para traçar um panorama preciso e pertinente sobre a sociedade brasileira e a falsa democracia racial.

Livro

“No canto dos ladinos”, de Quito Ribeiro. Todavia, 112 páginas. R$ 54,90 e R$ 34,90 (e-book). Romance.

Sobre o/a autor/a

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