Meu filho venceu o desafio de assistir ao show do Paul McCartney!

Adriana Czelusniak conta dos desafios de levar o filho Gabriel, de 13 anos, para se divertir com a música de Paul

Os últimos dias antes da apresentação do Paul McCartney em Curitiba me levaram a uma pesquisa sobre a acessibilidade de pessoas com autismo em espaços culturais. Insisti e perturbei o pessoal da Tickets For Fun com e-mails e telefonemas, eu queria saber se o Gabriel, que tem autismo e pela lei é considerado pessoa com deficiência, tinha o direito de ficar na área reservada para pessoas com deficiência, que na prática é usada por cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida.

Me diziam que não, que era só para questões físicas. Diante da minha insistência, na quarta pessoa que me atendeu tive a orientação de perguntar ao brigadista do setor se havia um espaço mais confortável para ele ficar, sem garantias do uso do espaço reservado. Fui pesquisar nas leis, perguntei a advogados, consultei a Coordenação Municipal da Pessoa com Deficiência, não consegui nada específico. O Estatuto da Pessoa com Deficiência determina esse direito de uma forma geral (coloco abaixo os trechos referentes).

Há alguns anos que tenho buscado ações de inclusão social e cultural para o autismo. Lancei em Curitiba, por exemplo, as sessões de cinema adaptado, um projeto semelhante ao que conheci na Suécia, voltado a pessoas com Alzheimer e que têm visitas especiais em museus e galerias de arte. Pessoas com autismo passaram a ir ao cinema pela primeira vez, pois a adaptação tornava o ambiente mais confortável a elas. Som mais baixo, ambiente mais iluminado e a liberdade de andar pela sala ou emitir sons durante o filme ajudavam a melhorar essa experiência. A partir dessas primeiras experiências para alguns foi ficando mais fácil estar em sessões tradicionais, um avanço.

À frente da presidência da Associação União de Pais pelo Autismo (Uppa) pude organizar outras oportunidades de lazer, como idas ao teatro, a shows e até iniciamos apresentações musicais em que as estrelas eram as próprias crianças com autismo, uma parceria com a Musicking. Isso ajudou muitas famílias a tirarem seus filhos de casa e ocuparem espaços que antes não tinham coragem. Vale lembrar que pessoas com autismo têm questões sensoriais, podem não suportar barulhos altos, aglomeração de pessoas, pouco espaço de circulação, luzes fortes etc. O preconceito e atitude discriminatória que as famílias enfrentam ao sair de casa é outra questão que limita o acesso de quem tem autismo a esses eventos.

Hoje concentro iniciativas inclusivas pelo meu projeto Vivendo a Inclusão e percebo que ainda contamos com a boa vontade de empresários que vez ou outra abrem as portas para projetos voltados ao autismo. Mas esse episódio do show do Paul McCartney fez com que me voltasse à falta de termos na legislação de algo específico e claro sobre o acesso de pessoas com autismo e suas condições e necessidades em eventos privados ou públicos. A Lei Berenice Piana (12.764) afirma que “são direitos da pessoa com transtorno do espectro autista: I – a vida digna, a integridade física e moral, o livre desenvolvimento da personalidade, a segurança e o lazer” (art 3º), mas não se detalha como isso deve ocorrer.

O show

Arrisquei. Chegamos ao Couto Pereira meia hora antes do início do show, para que ele não cansasse com a espera antes mesmo da primeira música começar. Levei na bolsa algumas balinhas, dinheiro, meu celular bem carregado caso precisasse distraí-lo. Também me preparei para ter de deixar o show pela metade caso ele não conseguisse ficar lá, fosse pelo som alto, fosse pelo tumulto de pessoas, fosse pela falta de espaço pra andar ou correr de um lado para o outro – algo que faz com frequência para se acalmar.

Meu bolso havia permitido a compra de ingressos no setor pista simples e pra lá nos dirigimos, coração acelerado. Já na entrada, a revista. Ele teria de ser revistado por um segurança masculino, mesmo tendo 13 anos. Gelo. Muitas pessoas com autismo não toleram ser tocadas como é feito em uma revista. O segurança foi rápido e com toques leves, Gabriel permitiu sem se desorganizar. Passamos por essa.

Passo à frente, outro desafio chamado “banheiro químico escuro”. Não pude ir com ele na parte masculina, ele não pode ir comigo na parte feminina. Não havia área de banheiro para família. Ponto pro Gabriel, que enfrentou o banheiro mal iluminado e conseguiu até trancar e destrancar a porta – no autismo é comum haver também algum comprometimento de funções motoras. “Não há chance de eu assistir ao show sem lavar as mãos”, me disse ao sair. Ok, sem torneiras por perto, minha salvação foi conseguir uma pedrinha de gelo do ambulante. “Pronto, esfrega o gelo nas mãos e já será o suficiente hoje.”

Descemos a rampa para o gramado e já fui buscando o brigadista. Os seguranças me apontaram uma moça com colete dos Bombeiros. Expliquei a ela a situação e ela me deixou escolher entre duas áreas reservadas, uma no fundo e uma entre a pista Premium e a simples. Arrisquei a do meio do estádio, com melhor visão.

Chegando lá de fato havia cadeirantes e algumas poucas pessoas, pés engessados ou enfaixados. Nos informaram que não havia cadeira pra todo mundo, então teríamos apenas uma. Era mais do que eu esperava. Dali dava pra ver bem o palco, não estava muito próximo de caixas de som, sem muita gente aglomerada, havia algum espaço livre para ele se movimentar. Sensação de ter ganho na loteria.

Em um ou outro momento Gabriel se sentou para descansar de tantos pulos de alegria que dava. Os fogos do final o fizeram colocar as mãos nos ouvidos. Tive de explicar pra ele que ficar andando de um lado para o outro podia incomodar quem estava atrás tentando assistir. Se não fosse por esses detalhes ele teria passado por um adolescente comum, que não quer ser filmado pela mãe, que acha que sorrir pra foto com a mãe é pagar mico, que estava aproveitando pra dançar e ver um ídolo da música ao vivo.

Penso que se a sociedade, o poder público, as grandes empresas do entretenimento conhecessem as condições das pessoas com autismo, outros Gabrieis poderiam ter a chance de aproveitar, em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas, esse direito de acesso à cultura e ao lazer. Vamos trabalhar para que isso aconteça, essa já fica como uma das pautas para o nosso 2 de abril, Dia Mundial da Conscientização Pelo Autismo.


LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015.

Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).

Art. 1º É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

  • 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará: (Vigência)

I – os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;

II – os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;

III – a limitação no desempenho de atividades; e

IV – a restrição de participação.

Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se:

VI – adaptações razoáveis: adaptações, modificações e ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional e indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que a pessoa com deficiência possa gozar ou exercer, em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos e liberdades fundamentais;

IV – barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros, classificadas em:

  1. a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e privados abertos ao público ou de uso coletivo;
  2. b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados;
  3. c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de transportes;
  4. d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação;
  5. e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas;

Art. 8º É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.

Do Atendimento Prioritário

Art. 9º A pessoa com deficiência tem direito a receber atendimento prioritário, sobretudo com a finalidade de:

I – proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

II – atendimento em todas as instituições e serviços de atendimento ao público;

III – disponibilização de recursos, tanto humanos quanto tecnológicos, que garantam atendimento em igualdade de condições com as demais pessoas;

CAPÍTULO IX

DO DIREITO À CULTURA, AO ESPORTE, AO TURISMO E AO LAZER

Art. 42. A pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, sendo-lhe garantido o acesso:

I – a bens culturais em formato acessível;

II – a programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessível; e

III – a monumentos e locais de importância cultural e a espaços que ofereçam serviços ou eventos culturais e esportivos.

  • 1º É vedada a recusa de oferta de obra intelectual em formato acessível à pessoa com deficiência, sob qualquer argumento, inclusive sob a alegação de proteção dos direitos de propriedade intelectual.
  • 2º O poder público deve adotar soluções destinadas à eliminação, à redução ou à superação de barreiras para a promoção do acesso a todo patrimônio cultural, observadas as normas de acessibilidade, ambientais e de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.

Art. 43. O poder público deve promover a participação da pessoa com deficiência em atividades artísticas, intelectuais, culturais, esportivas e recreativas, com vistas ao seu protagonismo, devendo:

I – incentivar a provisão de instrução, de treinamento e de recursos adequados, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas;

II – assegurar acessibilidade nos locais de eventos e nos serviços prestados por pessoa ou entidade envolvida na organização das atividades de que trata este artigo; e

III – assegurar a participação da pessoa com deficiência em jogos e atividades recreativas, esportivas, de lazer, culturais e artísticas, inclusive no sistema escolar, em igualdade de condições com as demais pessoas.

Art. 44. Nos teatros, cinemas, auditórios, estádios, ginásios de esporte, locais de espetáculos e de conferências e similares, serão reservados espaços livres e assentos para a pessoa com deficiência, de acordo com a capacidade de lotação da edificação, observado o disposto em regulamento.

  • 1º Os espaços e assentos a que se refere este artigo devem ser distribuídos pelo recinto em locais diversos, de boa visibilidade, em todos os setores, próximos aos corredores, devidamente sinalizados, evitando-se áreas segregadas de público e obstrução das saídas, em conformidade com as normas de acessibilidade.
  • 2º No caso de não haver comprovada procura pelos assentos reservados, esses podem, excepcionalmente, ser ocupados por pessoas sem deficiência ou que não tenham mobilidade reduzida, observado o disposto em regulamento.
  • 3º Os espaços e assentos a que se refere este artigo devem situar-se em locais que garantam a acomodação de, no mínimo, 1 (um) acompanhante da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, resguardado o direito de se acomodar proximamente a grupo familiar e comunitário.

CAPÍTULO III

DA TECNOLOGIA ASSISTIVA

Art. 74. É garantido à pessoa com deficiência acesso a produtos, recursos, estratégias, práticas, processos, métodos e serviços de tecnologia assistiva que maximizem sua autonomia, mobilidade pessoal e qualidade de vida.

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