Luís Henrique Pellanda cria narrativas de sonhos e pesadelos

Em entrevista, o escritor que lança "O caçador chegou tarde" neste sábado (3), na livraria Arte e Letra, fala sobre educação sentimental e árvores

Uma vez, num evento literário, Luís Henrique Pellanda ouviu uma leitora dizer que o narrador de suas crônicas era um sonhador que percorria um ambiente de sonhos. “Pois esse aspecto da minha escrita, claro, se intensificou nos últimos anos”, diz o autor, que lança os contos de “O caçador chegou tarde” neste sábado (3), às 10h30, na livraria Arte e Letra (Rua Desembargador Motta, 2.011).

Luís Henrique Pellanda

Para Pellanda, a narrativa dos sonhos tem um conteúdo poderoso e a forma livre. E talvez por isso seja “impossível de classificar”. Já os pesadelos que o Brasil e o mundo viveram nos últimos anos fizeram o escritor “fechar para balanço”. E fechado em si mesmo, ele se deu conta de que queria escrever um livro “sob essa luz de sonho e pesadelo, mas que se deixasse contaminar também pela fábula, pelo conto de fadas, pela alegoria e, sim, pelo cotidiano caótico que ainda ameaça a sanidade e a sobrevivência de tanta gente”.

Na falta de um termo mais preciso, os textos de “O caçador chegou tarde” podem ser classificados como contos, mas, na prática, eles são muito mais do que uma coisa só. 

Na entrevista a seguir, o escritor finalista do Prêmio Jabuti fala sobre sonhos, educação sentimental e… árvores.

Narrativa dos sonhos

Você define “O caçador chegou tarde” como “uma espécie de sonhário coletivo”. Poderia falar mais sobre essa definição? De onde veio essa ideia de “sonhário” e por que você vê os seus contos dessa forma?

Eu sempre me revezei entre o hábito e o desejo de escrever sonhários. Às vezes mantinha um diário de sonhos e me entregava a ele com disciplina, às vezes me cansava de tudo e esquecia daquilo por um tempo. Mas a narrativa dos sonhos, impossível de classificar a partir de nossas taxonomias mais pragmáticas, nunca deixou de me impressionar, desde a infância. Aquele equilíbrio frágil entre um conteúdo bastante poderoso, estética e simbolicamente falando, e uma forma muito livre e irreverente de experimentá-lo.

Como autor, desde o meu primeiro livro de contos, “O macaco ornamental”, de 2009, eu buscava brincar com essas ideias e perspectivas, mas de forma meio tímida, publicando dois ou três contos com essa pegada, espalhados entre outros, mais ou menos convencionais, em que os sonhos apareciam incidentalmente. Mesmo como cronista eu faço isso.

Uma vez, num evento literário, uma leitora me disse que, para ela, o narrador das minhas crônicas era um sonhador que percorria uma Curitiba também de sonho, expondo assim, em seus textos, o inconsciente de toda uma cidade. Pois esse aspecto da minha escrita, claro, se intensificou nos últimos anos. Vivenciamos crises políticas e econômicas, colapsos no mundo do trabalho e da comunicação, distopias de fundo ideológico-psiquiátrico, uma pandemia que nos adoeceu em vários sentidos e nos forçou a uma quarentena transformadora.

Durante o isolamento, a raiva e a perplexidade que senti, misturadas à insegurança causada pelo desaparecimento do trabalho e do dinheiro, à impossibilidade de andar por aí, proteger os nossos e vivenciar o real, fizeram com que eu me fechasse para balanço. Pensei então em finalmente escrever um livro todo sob essa luz de sonho e pesadelo, mas que se deixasse contaminar também pela fábula, pelo conto de fadas, pela alegoria e, sim, pelo cotidiano caótico que ainda ameaça a sanidade e a sobrevivência de tanta gente.   

Sonho e infância 

Você tem uma habilidade incrível para criar mundos inteiros em histórias que às vezes são muito breves, e que transitam por uma quantidade grande de temas. Então fiquei curioso para perguntar: você tem algum tema recorrente ou mesmo obsessão que aparece quando escreve? (Talvez as sibipirunas façam parte dessa lista?)

Acho que sim. E essas obsessões vão se acumulando com o tempo e a prática, permitindo que eu as isole, identifique, classifique e, por fim, as assuma. Não se trata de terapia, claro, mas escrever, apesar de ser um trabalho feito à sombra, acaba por nos fornecer alguma claridade.

No meu caso, descobri que um de meus temas incontornáveis é a inadequação. O macaco ornamental a que me referia era essa criatura que, ao evoluir, buscou refúgio e segurança fora da natureza, somente para descobrir que suas cidades se tornaram mais hostis que o ambiente selvagem que renegou e ao qual não pode mais voltar.

Além disso (ou melhor, além disso não, pois acredito que tais obsessões sejam parte integrante uma da outra), já percebi que revisito sempre um mesmo espaço híbrido de sonho e infância, um lugar onde a memória se fortalece justamente ao confundir-se com a imaginação mais fantasiosa, em busca talvez de maiores esclarecimentos sobre o porquê de nossa educação sentimental ser tão pobre, tão falha. Temo, inclusive, que nossa educação, desde o início, seja uma educação para o abuso, a aceitação do abuso em várias de suas modalidades, e quem sabe seja disso que trata muito do que escrevo.

Uma árvore

Os contos de “O caçador chegou tarde” são abertos à interpretação. Eu, por exemplo, consegui ver alegorias políticas em “As pessoinhas” e “Meio quadrúpede”. Para você, as interpretações têm limite? 

Não há como impor limites à interpretação dos leitores. Aliás, a epígrafe que escolhi para o livro, de William Blake, tangencia essa impossibilidade: “Um tolo não vê a mesma árvore que um sábio vê”. Pois entre esse tolo e esse sábio, há infinitas gradações, tolice e sabedoria para todos os gostos.

A respeito de uma mesma árvore, num mesmo conto, poderemos colher as impressões mais diversas. Um ambientalista verá nela um elemento inequívoco de alegoria política; já um leitor de fumaças mais líricas jamais deixará de admirá-la através do véu do poético. São leituras possíveis.

Você falou mais acima a respeito das sibipirunas, e sim, as árvores estão sempre presentes no que escrevo. Mas um jornalista de tevê, interessado em servir à comunidade urbana produtiva, compreenderá as árvores, muitas vezes, como simples problemas de trânsito. Choveu demais, ventou muito, uma árvore caiu, atrapalhou o tráfego, será preciso fazer um desvio por uma rua secundária.

O ex-presidente, anos atrás, num discurso desqualificado sobre a Amazônia, disse que não via valor na “porra da árvore”. É, no mínimo, uma maneira estranha de se referir às árvores, reveladora de um ódio nada natural, em que talvez se misturem ressentimento, imaturidade, interesse financeiro e ignorância. Como impor limites a isso?

Abro meu livro com a história de uma árvore, a sibipiruna em que se sobe e de onde nunca mais se desce, e o encerro com o relato de um arvoredo inviável, avistado a partir do exílio no deserto. Para mim, as árvores falam um idioma claro, compreensível e também generoso, pois o considero realmente aberto. Tudo que posso esperar é que esse idioma, assim como a música que escapa de dentro da baleia em outro de meus contos, seja convidativo e universal.  

Livro

“O caçador chegou tarde”, de Luís Henrique Pellanda. Maralto Edições, 168 páginas, R$ 44,90. Contos.

O lançamento do livro será no sábado (3), às 10h30 na livraria Arte e Letra (Rua Desembargador Motta, 2.011 – Batel). 

Sobre o/a autor/a

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