Os olhares que uma mulher preta recebe

Aprendi a olhar de uma forma mais gentil para minhas pessoas, quando encontro uma mulher preta andando na rua

Cresci recebendo muitos olhares.

Aprendi desde sempre a saber o que cada um significa. Para qual olhar eu tenho que erguer a cabeça; quais são os olhares gentis mas que têm uma ponta de hostilidade; quais são os olhares que machucam…

Aprendi a olhar de uma forma mais gentil para minhas pessoas, quando encontro uma mulher preta andando na rua com o black, com trança/dread ou o cabelo que ela quiser.

Lembro de cenas específicas, de pessoas sempre colocando a mão no meu cabelo, perguntando se minha mãe fazia californiana (eu tinha 5 anos) porque as pontas eram loiras. Pessoas que não tinham a menor intimidade comigo e que falavam como eu deveria cuidar do meu cabelo.

Mas lembro de um momento, quando vi uma mulher preta andando na rua de Curitiba, com o cabelo igual ao meu, armado, andando como se a rua fosse dela, não abaixando a cabeça para nenhuma outra pessoa que tentasse fazer ela se sentir pequena.

Ela era a rainha de tudo naquele momento pra mim, e olhei como se ela fosse uma deusa se rebelando pra mim. E naquele segundo, pra mim tudo ficou em câmera lenta; ela olhou pra baixo e me viu e deu o sorriso mas lindo que eu vi; e aquele foi o primeiro olhar de uma pessoa estranha, cheia de carinho e amor. Ali eu me senti vista, ela me olhou eu existi, mulher preta.

Entendi a importância que tinha enxergar os meus.

Me conheci.

Me reconheci preta.

Eu tinha oito anos quando decidi de vez ir pra escola com meu cabelo solto, como era pra ser; e recebi na agenda da escola: alerta de piolho. Obviamente que teve crises quando éramos crianças mas o engraçado era que foi justamente um dia depois de eu aparecer com o cabelo solto.

Como minha mãe trabalhava aprendi a arrumar meu cabelo sozinha. Mas deixar ele secar completamente era demais, armado demais, meu Deus.

Mas dei passos. Com 13 anos decidi nunca mais surtar por achar que meu cabelo atrapalha a visão das pessoas da sala, ou questionar por que não era preta que nem as outras, cabelo liso ou com trança. Eu estava junto das apagadas, as que todos até poderiam conhecer, mas nunca lembram.

Sempre estudei em escolas muito boas, e com muita gente branca. Minha criação foi com um pouco de aclamação pelos brancos, deixar passarem na nossa frente, baixar quando eles levantam, estar, ser e viver no padrão deles, que eles colocaram.

Lembro de falas que ouvi de família mesmo: “abaixa seu cabelo”, “prende ele”. Mas também ganhei o apelido do miojinho de um irmão de criação da família, que disputava comigo quem deixava o cabelo maior, qual crescia mais rápido. Isso fortaleceu quando eu ouvia certas falas/críticas que me machucaram, coisas que hoje eu consigo identificar onde me afetam e que me fazem ser quem eu sou.

Hoje me reconheço como preta, hoje eu reconheço quando recebo o olhar carinhoso de uma menina de 8 anos, olhando pra mim e para meu cabelo com os olhinhos brilhando. Ou super focado meio que sem entender como eu poderia estar com o cabelo solto e nada definido.

Me sentindo linda.

E entendo sobre me dar um afeto que não tive, indenizar um pouco e viver em cima disso me dando e aceitando receber carinho.

Meu encantamento me tira e me coloca em situações, minha conscientização racial me faz querer ser mão de obra, mas para pessoas pretas, entender o corre delas, para que elas possam entender o meu, viver no meu mundo é ruim

Viver no mundo onde branckkk tem que ser servido é repugnante; viver fora disso é a questão.

É entender uma Marielle Franco incomodando.

É entender uma Carol Dartora sendo deputada federal.

E entender o corre que a Madam C.J Walker fez, e como isso reflete hoje.

Saber que é mais, que pode mais e realmente fazer mais.

Ser preta dobra seu corre, as quedas e os tropeços criam revolta; mas também voltamos mais fortes.

Ser mulher preta é foda, mas saber da força que nossas ancestrais tiveram é grandioso demais pra um mero branckkk.

Reconheço minha falta de afetividade em relação a certos amores, carinhos e afeto, mas como disse Baco em “Imortais e fatais 2”:

“Isso é sobre carinho, afeto, crença ou a falta de tudo isso. E sobre todos que viveram sozinhos e quando foram amados não sabiam o que fazer.”

Mas aprendi a receber olhares e aceitar eles dentro de mim como carinho e afeto, admiração.

Sou grata pela que vivi e vivo.

Sou grata por estar sendo uma eterna aprendiz de vida de uma Black Woman, mulher preta.

Meu nome é Nielly, e eu aceitei com 18 anos.

Esse texto é parte do projeto Periferias Plurais, em que o Plural convida jovens de Curitiba a falar de suas vidas e suas comunidades. O projeto tem apoio do Gasam.

Sobre o/a autor/a

6 comentários em “Os olhares que uma mulher preta recebe”

  1. Emocionante esse relato. Obrigada por compartilhar algo tão seu. Nielly é luz onde passa. Sem nem mesmo conhecer dá pra sentir o amor que ela coloca na vida e dá às pessoas. Sou grata pela sua existência. Lindo texto, pequena.

  2. É incrível que é um texto de uma mulher, mas eu me identifiquei o texto inteiro, a realidade dos pretos é igual, de pequeno a adulto. Belo texto, belas palavras, parabéns ao projeto

  3. Cara Nielly, o argumento do Nabby Clifford é uma grande sofisma. Nós afrodescendentes, somos negros, da raça* negra. Corromper a língua, usando linguagem neutra ou referindo-se aos afrodescendentes por pretos ao invés de negros, não muda absolutamente o que vai no coração das pessoas.

    “Se pra biologia não faz sentido falar em raças humanas, para as ciências sociais faz. E muito. Pois a raiz do racismo é econômica, política e social, e não biológica.”
    (Prof. Renan Santos)

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