Quando o racismo não está cartografado no mapa

Colorismo e passabilidade são temas do novo romance de Brit Bennet

Na manhã que abre a primeira página do livro, não houve maior escândalo que assistir à volta de uma das gêmeas desaparecidas, Desiree, de mãos dadas com uma criança chamada Jude, mais negra do que ela. O cheiro de café vindo de dentro da lanchonete Lou’s Egg não foi suficiente para conter o conflito latente entre o racismo e a ausência de alguém, espalhando perguntas ao vento, questionando onde está a Outra gêmea e quem é o pai daquela menina “preta como piche” que acompanha a mãe “cor de areia úmida”, no léxico do povoado.

As fronteiras são esmaecidas no romance “A metade perdida”, de Brit Bennet, assim como a cartografia de Mallard, a cidadezinha rural do sul dos Estados Unidos que dá superfície ao livro, tão insignificante e minúscula que não consta no mapa. É da pobreza e da cultura racista de embranquecimento que as irmãs Desiree e Stella Vignes decidem fugir em 1958, quando abandonam um futuro pré-determinado em que lhes restaria viver como mulheres de cor, limpando a casa de brancos e cuidando de suas crianças.

Em uma narrativa que vai e vem, entre as décadas de 1950 e 1990, as faltas sobressaem nesse um mundo onde metades não formam um inteiro, mas apenas uma colagem mal feita de pedaços que nunca se completam. Quando Desiree e Stella fogem para Nova Orleans é que as lacunas provocam rupturas narrativas. Pouco tempo depois, Stella abandona a irmã e passa a viver como branca, casando-se com um homem branco tão envolto em si mesmo que nunca desconfia do passado da esposa. Desiree se casa com um homem negro, tem uma filha negra e retorna a Mallard após ser vítima de violência doméstica, não como uma heroína que fechou a sua jornada, mas como uma mulher que passa o resto da vida pulando sobre os seus pontos de virada.

As ausências são preenchidas pelo silêncio. Mais quieta, Stella guarda para si o seu passado e performa como se sua vida tivesse começado no dia que abandonou a irmã. Stella é branca ou negra, afinal? Torna-se, quem sabe, alguma coisa entre os dois, já que não consegue afugentar o passado, por mais que performe como uma mulher branca, privilegiada e, sim, racista. A personagem espreme e aperta qualquer resquício das suas vivências, como o sofrimento de perder o pai incriminado simplesmente por ser negro e a fuga ao deixar a sua metade que, convenhamos, nunca foi simétrica, muito menos complementar. Desiree e Stella são partes de todos diferentes e a busca pela outra mais atrapalha que ajuda na tarefa de colar os próprios pedaços.

“Mas até mesmo ali, onde ninguém se casava com pretos, eles ainda eram pessoas de cor, o que significava que homens brancos podiam matá-lo caso você se recusasse a morrer. As gêmeas Vignes eram um lembrete daquilo: garotinhas pequenas com vestidos de funeral que cresceriam sem um pai porque alguns homens brancos haviam decidido assim”

A todo momento, Brit Bennet reforça a construção de identidades fragmentadas e intercambiáveis, não apenas na trajetória das gêmeas, mas também nas de suas filhas (Jude e Kimberly) e outros personagens.  Vale uma menção para Reese, homem trans e também fugitivo do sul, representando o momento em que Brit Bennet dá um salto, abrindo espaço para um outro ponto de vista sobre interseccionalidades na narrativa. Impossível não mencionar o trecho que remete à fuga do personagem de sua cidadezinha para Los Angeles, enquanto se despia de seu corpo feminino, e que nos atravessa sem dó: “Quão real era uma pessoa se dava para se livrar dela em mil e seiscentos quilômetros?”. A identidade como ficção de si costura as páginas, permeabilizando um texto linear-fragmentado tanto em conteúdo quanto em forma.

Publicado em junho de 2020 na versão original, é difícil não relacionar “A metade perdida” às feridas (re)abertas pelo assassinato de George Floyd e ao subsequente movimento Black Lives Matter, como sintomas de tantos outros e outros tantos que foram vítimas – e que não serão esquecidas.

Também é inevitável não colocá-la em interlocução com outras narrativas do colorismo como “Identidade”, romance de Nella Larsen, publicado em 1929 e escrito em contexto estadunidense, que esboça a passabilidade racial e que ecoa ao longo da narrativa de Brit Bennet, como a própria autora afirmou em outros momentos sobre o processo criativo da sua obra. Ou, ainda, com a minissérie “A Vida e a História de Madam C.J. Walker”, lançada em março de 2020, como uma produção original da Netflix, a respeito da primeira mulher negra milionária nos Estados Unidos e que representa dilemas do colorismo em alguns de seus episódios, ao evidenciar o conflito da personagem principal com uma rival empreendedora, facilmente rotulável como “cor de areia úmida” no mundo possível de Mallard.

A cidadezinha pode até não estar registrada no mapa e ter a sua história apagada, chegando ao ponto de mudar de nome lá pelas últimas páginas. Mas a dor da discriminação tem território delimitado na memória, ainda que Desirees consigam fugir para nunca mais voltar, que Reeses assumam as suas cicatrizes no peito e que Judes realizem o inacreditável.

Serviço

A Metade Perdida, de Brit Bennet. Tradução de Thaís Britto. Intrínseca, 336 páginas, R$ 54,90 (papel) ou R$ 36,90 (e-book).

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