O rasgo da perda, o amargo da dor, o custo da luta

Em Luto, guatemalteco Eduardo Halfon reconstrói uma autobiografia

A epígrafe do livro, mantida em espanhol, nos conta algo que a tradução do título da obra perde ligeiramente: duelo, no original, tanto significa embate, peleja, luta, como é um sinônimo para dor, sofrimento pessoal. É também o termo coloquial para o luto, sentimento profundo de tristeza e pesar pela perda de alguém. Luto, o livro, contém todos os significados do termo que o nomina. Nas fendas das dores insuperáveis que cada antepassado do autor carrega, no peso das vestes negras das quais cada um deles nunca se despiu de fato, na energia consumida para reconstruir essas feridas e superá-las. Luto é a história dos duelos do homem para carregar e preencher as suas faltas. Para mergulhar para dentro e apurar os ouvidos sempre que colibris lhes sobrevoarem as cabeças, tentando lhes passar os seus recados.

As linhas recuperadas por Eduardo Halfon no curso das suas memórias vão sendo cruzadas e se encontrando, até tecer o poncho que, ao final, aconchegará ele nas suas dores, perdas e duelos, em um crescendo de intensidade, entregas e silêncios, anáforas bem aplicadas que dotam a escrita de uma oralidade ritmada muito bem construída, amarrando o leitor no correr das águas do tempo e espaço das memórias dos seus voos e retornos.

A verdade do narrador, como o colibri ⎼ pássaro que, segundo os Maias, deuses criaram, depois de terem feito todas as coisas no mundo, a partir de uma seta talhada em pedra de jade, para voar o mundo inteiro, levando em si os desejos e pensamentos dos homens de um lugar para outro ⎼ perdeu-se nos cruzamentos das histórias, nos caminhos do mundo, e precisa ser resgatada. Eduardo precisa mergulhar fundo na própria ancestralidade, precisa encontrar a verdade sobre Salomón, sobre todos os Salomóns que carrega dentro de si e que o estão matando por dentro, esse menino interrompido, perdido no fundo do lago, todos eles a resposta.

O livro flui também por figuras mitológicas guatemaltecas, como é o caso do caseiro do antigo chalé, Dom Isidoro, que ali permaneceu ano após ano, dono após dono, como se pertencesse ao imóvel, e a bruxa Ermelinda e seu misticismo xamã, que conduz o autor em uma experiência de reencontro com a sua verdade, “a sua verdade sua”, entranhada nas camadas de suas histórias mal sepultadas, das incompletudes na sua árvore genealógica, das lacunas de informações nele sobre aquilo de que ele mesmo é feito.

A narrativa desloca-se no tempo e espaço com quebras e reencontros, com pontos largados sem remate retomados adiante para novas conexões entre passado e presente, também do passado com o presente, inclusive, como um grande cobertor que se desenha nos fios familiares que se cruzam e se afastam, de vínculos que vão sendo rompidos e religados, em uma tentativa sôfrega do homem, com tantas que são as suas origens, de reconstruir-se para trás, encontrando-se em algo que se perdeu, algo que mora no lago de Amatitlán, no curso da sua existência e também em si mesmo.

A narrativa se inicia com o autor retornando ao antigo chalé de seus avós em Amatitlán, onde passou parte da sua infância vivendo aventuras ao lado do irmão mais novo. O tempo da história, então, se desloca para o passado, para a reconstrução das raízes do homem adulto, que, menino, reorganiza os passos dos seus familiares. Seu avô paterno, libanês, “voando pelos ares” pela Córsega, França, América do Norte e do Sul; seus bisavós paternos, de Beirute e Alepo, ambos chamados Salomón; seu avô materno, polonês, capturado e mandado para campos de concentração entre seus 20 e 25 anos de idade, durante a segunda guerra mundial, e que também tinha um irmão chamado Salomón, morto de fome no curso da guerra. O menino também reconstrói os próprios passos e de seus pais, que se mudaram para os Estados Unidos quando Eduardo ainda tinha dez anos, exilando-se no período conhecido como a Guerra Civil da Guatemala.

Em Luto (Mudaréu, 2018), os fragmentos das memórias do autor, trazidos de diferentes espaços e épocas, são superpostos em um mosaico de informações que se ligam e não se ligam ao mistério apresentado na primeira frase do livro, a morte de Salomón, irmão mais velho do pai de Eduardo, que teria morrido afogado no lago quando tinha apenas cinco anos e sobre o qual não se falava em sua família. 

No fundo do lago de Amatitlán, nos diz Eduardo, também existem corpos de guerrilheiros assassinados, ou talvez sejam mais alguns dos muitos meninos que não se chamavam Salomón, que entraram ou caíram no lago em diferentes momentos, e que, por isso, se atrelaram ao lago para todo o sempre.

Ao redor do lago de Amatitlán encontram-se muitos amates, árvores cuja casca, depois de tratada e alisada, era usada, tempos atrás, como pergaminho. Amate, na língua ancestral da região, quer dizer papel, e Eduardo Halfon nos diz que talvez Amatitlán queira dizer, exatamente por isso, cidade das letras, ou talvez não significasse nada.

No fundo do lago de Amatitlán, nos diz Eduardo Halfon, estiveram muitas peças arqueológicas maias, cântaros e jarras pré-colombianas, parte da ancestralidade perdida que habitantes nativos dos arredores resgataram e entregaram aos patrões em troca de algum troco de dólar.

Helena Argolo é advogada, jornalista, ativista social, revisora e escritora. É diretora da ONG Mãos Invisíveis. Prepara o seu primeiro romance.

Serviço

Luto, de Eduardo Halfon. Tradução de Lui Fagundes. Mundaréu, R$ 40,00.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “O rasgo da perda, o amargo da dor, o custo da luta”

  1. Que a Eduardo Halfon, em “Luto” consiga nos seduzir tanto quanto Helena Argolo, em sua resenha, cujo artesanal fio condutor ilumina os matizes de vivências reconstuidas no tempo e espaço, numa transcendência onírica. A resenha me faz ler o livro.

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