“O escritor é quem sustenta um jornal de literatura”, diz criador do RelevO

Em entrevista, o editor Daniel Zanella fala sobre o impresso independente que celebrou dez anos em setembro

Dez anos atrás, nascia o RelevO, um jornal de literatura feito em Araucária, amplamente distribuído em Curitiba e que, hoje, chega a todos os estados brasileiros.

Até outubro deste ano, foram 137 edições colocadas no mundo por uma equipe de oito pessoas, liderada pelo jornalista e escritor Daniel Zanella. A primeira saiu em 2 de setembro de 2010, e desde então, as publicações desse mês são comemorativas.

Em entrevista ao Plural, o editor fala sobre a resistência do periódico e os muitos desafios de ter publicado, de forma independente, cerca de 1.500 escritores e escritoras ao longo da última década. 

Plural: Dez anos atrás, como surgiu a ideia de criar o RelevO? 

Daniel Zanella: Desde o início da minha vida como jornaleiro, em 2004, gostava muito dos jornais de literatura. Eu encontrava-os nas gráficas, nos pontos de distribuição, aí comecei a desenvolver um afeto peculiar por esse tipo de periódico. Quando consegui iniciar Jornalismo, após passar no Enem, em 2010, comecei a especular quais as habilidades necessárias pra colocar essa ideia em prática. Então, logo no primeiro semestre, aprendi a diagramar e comecei a montar o piloto do RelevO, que saiu em setembro. Depois resolvi o problema financeiro ao levantar 200 reais para a impressão com dois anunciantes. 

Qual era o seu primeiro objetivo com as publicações?

Meu objetivo era publicar os cronistas que gostava, nada mais do que isso, os textos que gostava. Foi depois que o jornal foi ampliando seus gêneros literários e ficando com um jeitão de periódico de literatura + outros textos divertidos.

Você tinha a expectativa de fazer um projeto tão durável?

Não, de modo algum. Eu conhecia a Maldição dos Sete Números de que falava o Olavo Bilac, dos impressos literários que morrem antes de passar das sete edições. Cada edição que publicávamos era mais um fim que adiávamos. E sempre precisei fazer outras coisas pra financiar o jornal. Muitas edições eu nem sei como conseguimos imprimir.

De lá pra cá, quais foram os principais desafios e mudanças no processo de fazer o jornal?

Nós mudamos muito o tipo de texto publicado, começamos a receber um volume maior de originais e de livros, também o jornal mudou a configuração, saindo de 8 páginas, chegando a 32, aí estabilizando nas atuais 24. Visualmente, o jornal mudou muito. A partir de 2015, a crise dos impressos chegou firme, com muitos jornais de papel fechando, aumento de custos. Em 2012, começamos a vender assinaturas, que cresceram mesmo em 2017, se mantendo, então, em um patamar de estabilidade até começo de 2020, quando começou a pandemia – e agora tentamos não ser estatística no cenário cultural das falências.

Como foi manter financeiramente o RelevO durante todo esse tempo?

Como manter financeiramente um projeto cultural no Brasil é mais importante do que ter uma ideia de projeto cultural no Brasil. Costumo dizer que são dois os caminhos mais habituais da cultura no Brasil: ser rico (ou amigo do rico certo) e gostar de dinheiro público. Não me atrai nenhuma das duas vias. Nós vivemos de assinantes, aproximadamente 1.100, e de pequenos e médios anunciantes, que nos auxiliam a suportar os custos e nunca precisar viver o jogo do fisiologismo cultural do Brasil.

Recentemente vocês anunciaram que os textos passariam a ser remunerados: R$ 60 por publicação. O que foi preciso para chegar nessa solução?

Esse era um sonho antigo meu. A cultura da gratuidade no meio literário é inacreditável. O escritor escreve de graça para veículos que lucram, que dizem não ter como pagar, mas que não apresentam publicamente suas contas. Aí os publishers constroem patrimônio, preenchem espaços monetizados do meio cultural, e os escritores seguem mendigando espaço em troca de divulgação. Na verdade, o escritor é quem sustenta um jornal de literatura e geralmente o único que não ganha nada pra isso. Não consigo entender como isso é legitimado. Resolvemos que agora seria o momento muito em virtude da pandemia, da ideia de distribuir ainda mais os recursos emergenciais que recebemos de assinantes que anteciparam assinaturas, fizeram doações e nos deram um fôlego extra pra lidar com as dificuldades atuais e com os sonhos antigos. Assumimos um risco e cá estamos.

Pessoalmente, quem é o editor? 

Apenas uma pessoa que gosta de ler e tem acesso privilegiado à produção literária contemporânea.

O jornal foi catalisador de mudanças pessoais pra você?

Certamente. Passei a ser chamado para festivais, feiras, palestras, oficinas. Muitos trabalhos surgiram a partir do meu trabalho com o jornal. Administrar um projeto longo e cansativo também afeta a forma como se observa o mundo, molda o caráter, se começa a valorizar mais determinadas coisas e a desprezar e não se preocupar com outras.

Quem mais faz o RelevO? 

Somos em oito: eu, publisher e editor; Mateus Ribeirete, editor-assistente e editor da Enclave; Amanda Andrade, editora da Latitudes; Fernanda Dante, editora; André Delavigne, diagramador; Bolívar Escobar e Marceli Mengarda, designers; Mara Czarnik, que me auxilia com a logística.

Como ele é feito/distribuído?

Nós montamos as edições do dia 20 ao 25 de cada mês, aí os jornais são embalados e enviados aos Correios. No restante do mês, vamos aos Correios uma vez por semana, pra despachar os exemplares dos novos assinantes e resolver reclamações.

Zanella na distribuição. Foto: RelevO

Hoje, o jornal chega a quantas pessoas/espaços, aproximadamente?

No período da pandemia, nossa tiragem diminuiu. Hoje imprimimos aproximadamente 2 mil exemplares, com exemplares direcionados apenas aos assinantes e aos parceiros comerciais. Sem pandemia, mandamos exemplares para mais de 400 pontos culturais do Brasil todo, sem deixar nenhum estado de fora, aí a nossa tiragem varia entre 4.500 e 6 mil exemplares. Enquanto não tivermos vacina acessível, não vamos mandar os exemplares dos pontos culturais.

Quantos escritores e escritoras já foram publicados?

Aproximadamente 1.500 escritores e escritoras.

Foram quantas edições?

137 até esta de outubro.

Como comemoraram a marca de dez anos?

Não fizemos festa, não fizemos nenhuma reunião especial. Apenas a nossa Edição de Colecionador, que tem todo ano. A edição de setembro teve sim alguns conteúdos direcionados para a lembrança dos dez anos. Mas, não sei, um ano tão estranho, tão difícil, a data chegou e nós fomos mais na direção de “estamos aqui, chegamos aqui, em frente”.

Jornal literário tem distribuição nacional. Foto: RelevO

Qual é a sensação de completar esses dez anos de publicações?

Editar um jornal de literatura no Brasil é uma forma divertida de repetir erros e também de observar como o próprio trabalho tem pouco impacto, tem pouca importância. É uma boa forma de elaborar a humildade, de entender que o que se faz é uma microcoisa que talvez mude alguma microcoisa no mundo.

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