Futuro do Rebouças pode ser uma catástrofe, diz autora de livro sobre arquitetura do bairro

Arquiteta Iaskara Florenzano alerta sobre os riscos que o patrimônio histórico seja engolido pelos interesses do capital

Primeiro bairro industrial de Curitiba, o Rebouças luta há décadas para encontrar uma nova vocação. A lenta e constante migração das fábricas para Cidade Industrial de Curitiba (CIC), a partir dos anos 1970, esvaziou o bairro que agora se encontra à deriva e pode ter um futuro ainda pior, caso o patrimônio arquitetônico e histórico não seja preservado.

“Se eu for fazer alguma previsão com base na atual legislação, será uma catástrofe. Se a lei de zoneamento se efetivar como previsto, com a divisão do bairro em cinco áreas, serão permitidas coisas que podem descaracterizar o bairro por completo”, alerta a arquiteta e urbanista, professora e pesquisadora Iaskara Florenzano, que há mais de dez anos estuda o Rebouças.

Ela acaba de lançar “Um olhar sobre o patrimônio industrial do Rebouças”. No livro, ela resgata a memória do bairro desde os tempo em que era apenas um terreno descampado e ainda se chamava Vila Iguaçu (mudaria de nome só na década de 1960).

O passado do Rebouças está intimamente ligado à explosão econômica do ciclo da erva-mate no Paraná que, a partir da inauguração em 1883 do edifício da estação ferroviária, no então limite sul da capital, viu a cidade se desenvolver rápido. A linha férrea ligava Curitiba ao litoral e, em seguida, passou a ligar também a capital ao interior e aos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, chegando à Bacia do Prata, possibilitando a exportação da erva-mate para o exterior.

Além dos engenhos, o bairro abrigava também cervejarias, madeireiras e fábrica de fósforos, armazéns, comércios diversos, edifícios institucionais, vilas operárias, edifícios religiosos, agremiação esportiva e escolas. Hoje, do auge do Rebouças, sobram apenas as fotografias e as memórias, como as que foram resgatadas pela obra de Florenzano.

Na entrevista a seguir, Iaskara Florenzano fala um pouco mais sobre o bairro do Rebouças.

No livro você diz que o Rebouças hoje é um bairro à deriva. Por quê?
Porque não encontrou uma nova vocação. A primeira vocação industrial se afirma com o tempo e vai até a década de 1940, quando, por incompatibilidade com a região, inicia um deslocamento das empresas para o Hauer e o Boqueirão.

No segundo pós-guerra, começou também um declínio das indústrias do mate, do café e da madeira, e um processo de desindustrialização que afetou o mundo inteiro.

No Rebouças observamos também o fechamento das instalações ferroviárias, que ao longo do tempo provoca um grande vazio. O processo de desindustrialização se acelera a partir da década de 1970 quando é criada a Cidade Industrial de Curitiba (CIC) e o Rebouças se torna uma região obsoleta.

Quando começou a vocação industrial do Rebouças?
Antes de 1883, aquela era uma área descambada, o marco é a construção da estação ferroviária [prédio hoje ocupado pelo shopping Estação]. Aos poucos, a região começa a ser ocupada e em 20 anos se transforma completamente: tem prolongamentos de ruas, um desenho [urbano] novo e o desenvolvimento começa a se espraiar não só pelo Rebouças, mas por toda a região sul da cidade.

Por que o Rebouças se tornou o primeiro bairro industrial de Curitiba?
Não foi uma escolha aleatória. Era um lugar estratégico, com ligações por duas ou três estradas para o litoral e, por isso, o trilho do trem não chegou ali por acaso. Porém, a área do Capanema e da atual rodoviária era um terreno muito encharcado porque ali se encontravam os rios Belém, Juvevê e Ivo, que eram chamados de “três cavaleiros da apocalipse” porque encanavam todos os detritos da cidade e funcionavam como esgoto.

Outro fator foi a construção da usina termoelétrica pela Companhia de São Paulo, que funcionava no terreno onde depois foi construído o Palácio Rio Branco [atual sede da Câmara Municipal].

Além das fábricas, o que havia no Rebouças na época industrial?
Havia vilas para ferroviários e operários, algumas ainda remanescentes. A presença do estádio Durival Britto e Silva [Vila Capanema] não ocorre à toa porque ali era o campo de futebol dos ferroviários. Há fotos belíssimas dos ferroviários e dos funcionários do moinho Anaconda jogando ali.

Havia toda uma questão social ao redor das indústrias. A partir do século 20, você sempre vai ver escolas, edifícios religiosos, clubes e agremiações sociais e esportivas, com piscina, além de mercados, restaurantes e pequeno comércio.

Uma coisa importante é que a paisagem do Rebouças transborda para além do Rebouças. O hospital Cajuru era o hospital dos ferroviários e ali havia também um convento. O moinho Anaconda também estava fora dos limites do Rebouças, assim como o [estádio] Durival Britto e Silva, mas todos esses edifícios estavam relacionados ao Rebouças.

Quando começam as tentativas para encontrar uma nova vocação para o bairro? E por que não tiveram êxito?
A partir da década de 1980, começam as tentativas, mas ficam mais evidentes nos anos 1990. Foram vários projetos que identificaram que o bairro estava ficando à deriva e se transformando numa área de passagem.

Então começam tentativas de criar projetos culturais e eu acho mesmo que ele tenha uma vocação cultural, só que por descontinuidade política, não se conseguiu implantar nada que funcione naquela área.

No livro, você conta que não existe um inventário dos edifícios abandonados. Mas há algum edifício que se destaque pelo valor arquitetônico?
Apenas num pequeno trecho do Rebouças que estudei para o meu mestrado – não no bairro inteiro –, identifiquei 87 elementos num universo de 272: são muros, chaminés, telhados, trilho de trem, casas, volumetrias daquele período que não foram descaracterizados e fazem parte da mesma cadeia cultural que produziu esse espaço.

Ou seja, há uma porcentagem muito grande de elementos que merecem ser preservados. Organizei todos numa escala que vai de um alto grau de necessidade de preservação a um grau mais baixo, o que significa que aquele elemento pode ser demolido – mas que pelo menos se faça um registro dele.

É preciso que se preserve os patrimônios mais valiosos e que não aconteça o que aconteceu com o edifício da estação ferroviária, que foi engolido por aquele edifício tão grande [shopping Estação], que é um falso histórico.

No dia do lançamento do livro, levei 30 crianças de 12 anos para visitar o bairro e elas achavam que o shopping estava lá antes da construção da estação ferroviária. Por isso, é um falso histórico que mais confunde do que esclarece.

Em muitas cidades ao redor do mundo, as áreas industriais foram revitalizadas e encontraram novas vocações. Basta pensar no bairro de Puerto Madero, em Buenos Aires, ou Williamsburg, em Nova York. Por que isso não pode ser feito em Curitiba?
Pode e deve ser feito, sim. Mas como isso vai ser feito, com quais critérios? Mesmo em Buenos Aires ou em Nova York, essas áreas resgatadas tiveram uma série de problemas. São projetos controversos.

Em Curitiba, é uma questão de incompetência ou de falta de interesse político?
São várias coisas: de fato é muito difícil trabalhar com patrimônio, é uma área multidisciplinar e muito técnica que requer estudo, teoria e, como tem muita gente envolvida nessa discussão, não há unanimidade. Não se trata de congelar a cidade, essa é uma visão muito arcaica. Os edifícios precisam ganhar novo uso, mas respeitando a história e a materialidade.

Além disso, falta corpo técnico na cidade para fazer isso: a prefeitura e os órgãos de patrimônio têm muita pouca gente qualificada. E há muitos interesses envolvidos, como o interesse do capital sobre o solo e a especulação imobiliária para a demolição dessas áreas.

A construção do templo da Igreja Universal não foi uma forma de dar nova utilidade ao bairro?
Primeiro, foi errado demolir um conjunto fabril muito valioso, que preservava a memória do trabalho, das pessoas e o patrimônio arquitetônico que ocupava um quarteirão inteiro e era heterogêneo, com edifícios construídos em tempos diferentes. Esses prédios foram desqualificados para justificar a demolição, ou seja, tudo que eles tinham de valor foi usado contra eles. Um absurdo.

Segundo, o templo é um edifício que não tem nada a ver com o bairro. E é mais um falso histórico: um edifício em estilo neoclássico numa escala monumental que não respeita em nada a altura das demais construções do bairro e numa qualidade de arquitetura bastante duvidosa. É um elefante numa área superdelicada.

E terceiro, não houve discussão sobre a destruição brutal do tecido urbano e da paisagem.

Como você imagina o futuro do Rebouças?
Só espero que seja protegido. Se eu for fazer alguma previsão com base na atual legislação, será uma catástrofe. Se a lei de zoneamento se efetivar como previsto, com a divisão do bairro em cinco áreas, serão permitidas coisas que podem descaracterizar o bairro por completo.

Vai acabar com a paisagem, vai salvar poucos elementos e há uma série de outros elementos que serão ignorados. O risco é o de fazerem uma tabula rasa. Minha esperança é de que algo seja feito e que a cidade acorde para a proteção do bairro, mas não sei se isso vai acontecer.

Se há tantos interesses especulativos sobre esse bairro, por que ainda não foi feita tabula rasa?
Isso estava acontecendo muito rápido por volta de 2013 e 2014, mas a crise econômica direcionou os interesses do capital para outras regiões da cidade. Se a economia melhorar, tenho certeza de que o capital vai se voltar para o Rebouças.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Futuro do Rebouças pode ser uma catástrofe, diz autora de livro sobre arquitetura do bairro”

  1. Transformação semelhante está ocorrendo no bairro do Pinheirinho na região sul de Curitiba. Com a mudança de logradouro à alguns anos atrás da antiga BR116, passando a se chamar Linha Verde, muitas empresas tradicionais de alimentos, adubos, madeireiras e manufaturas em geral, começaram a fechar gradativamente, tornando-se simplesmente barracões abandonados e depredados, ou deram lugar aos condomínios verticais e ao badalados comércios atacadistas.

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