Bruna Alcântara cria manifesto artístico com o lema “Mães também gozam”

Em entrevista, artista plástica explica que "costura porque foi costurada" e fala sobre a dor e o sofrimento presentes no gozo de mulheres mães

A jornalista e artista plástica Bruna Alcântara estava em Portugal, depois de passar por um parto e por uma episiotomia, quando decidiu que era preciso dizer a plenos pulmões: não é por ser mãe que a pessoa perde o direito a ter orgasmo.

O primeiro lembrete veio na forma de uma bandeira gigante, em inglês, para chamar a atenção dos turistas. “Mums also cum” era a frase estampada. Em português, o lema se transformaria em “Mães também gozam” e passaria a acompanhar Bruna pelos anos seguintes.

Separada, ela diz que ouviu muito que agora, como mãe, precisava se comportar. Decidiu pelo contrário: ser livre e ajudar outras mulheres a procurar pelo mesmo caminho. Nessa entrevista, Bruna fala sobre sexo, sexualidade depois da maternidade e sobre sua arte.

De onde surgiu a ideia da tua campanha? (Dá pra chamar de campanha?)
Eu não chamo de campanha, chamo de pesquisa artística ou manifesto artístico baseados em mim, no meu corpo e no corpo de tantas outras mulheres. Quando as pessoas leem a frase “mães também gozam”, muitas dão risada, veem algo humorístico. Mas tenho falado também sobre a dor e o sofrimento que incluem o gozo de mulheres mães.

Eu tive meu filho em Portugal há 7 anos e meu parto foi um caos: por vários motivos como xenofobia e machismo, por exemplo. Nele, eu sofri uma episiotomia, que é um procedimento cirúrgico que consiste em fazer um corte na região do períneo para o bebê sair. Muitos estudos médicos, desde a década de 70 e 80, já dizem que esse procedimento é uma forma de violência obstétrica. De acordo com a ética médica, a mulher deve ser avisada do procedimento. Não foi o que aconteceu comigo. Eu estava acordada, consciente e só soube do que tinham feito com o meu corpo, quando todos saíram da minha sala de parto e meu bebê já estava nos meus braços, vi uma médica me costurando, jorrava sangue no óculos de proteção dela e perguntei o que havia acontecido. No meu pós-parto, por meses aquilo doeu muito.

Por dois anos, não tive coragem de ver a cicatriz. Demorei até pegar um espelho e olhar. E foram anos romantizando o meu parto até aceitar que não, aquilo não era normal. Eu sofro até hoje quando falo disso, é uma cicatriz mental, além da física. Foram anos também para entender que eu podia voltar a ser uma mulher normal, livre, feliz e que goza, independente de ser mãe ou não, independente de ter sido rasgada e costurada. A arte vem daí, de me aceitar nesse processo de cura e aceitação, para posteriormente dialogar, em forma de obras, com outras pessoas que passaram pelo mesmo que eu.

(Acho importante dizer que eu não sou uma patricinha que estava vivendo na Europa. Eu sou uma ex-aluna do Prouni, que juntou dinheiro por anos pra fazer um mestrado em Portugal e trabalhava de garçonete pra conseguir viver lá).

Você faz materiais em português e inglês. Por quê?
A primeira vez que escrevi essa frase foi numa foto da minha própria mãe, lá por 2018. Mas posso dizer que não comecei aqui, comecei em Portugal. Estive esse ano numa viagem pelo país onde eu vivi por anos, mas onde também não havia mais estado. Eu senti que precisava perdoar as pessoas que me fizeram sofrer: enfermeiros, médicos e a sociedade machista portuguesa como um todo. Mas isso não tem um rosto, um nome, é abstrato. Então resolvi gritar em forma de arte, por isso meu projeto é grande, um tecido costurado a mão com 4 metros de altura e aproximadamente 3 de largura. A ironia é saber que trabalho com arte têxtil – costuro porque fui costurada.

Foi numa residência artística promovida pelo artista Orlando Vieira Francisco, em seu ateliê, onde a peça foi produzida. Até porque esse ateliê é um espaço que fica no principal ponto turístico da cidade, a ponte Dom Luís. Eu queria dar meu primeiro grito ali. E ali eu escolhi fazer em inglês, porque é onde passa a maior circulação de turistas da cidade, mas também porque é uma língua que boa parte da população portuguesa fala e entende. A primeira bandeira foi feita em inglês para me comunicar com o maior número de pessoas que pudesse.

Voltando de Portugal, eu propus a ação em Português, no Salão de Artes Degeneradas do Atêlie Sanitário, no Rio de Janeiro, que aconteceu em maio e junho deste ano. Desde então, tenho me dedicado a escutar, perceber e filtrar os retornos que tenho tido com o trabalho. São muitas mensagens de amor, mas também tem muito ódio vindo de um país polarizado, com tanta gente reacionária tendo voz nas redes sociais.

Até onde você acha que existe uma dificuldade das mães falarem da própria sexualidade ou de viverem sua sexualidade?
Sem dúvidas a dificuldade começa na romantização da maternidade: nos colocaram num lugar de santidade, que beira a castidade. Mas não, existe uma mulher dentro de nós antes de existir uma mãe. Essa mulher é um ser que quer gozar dos seus direitos, dos seus prazeres, dos seus amores e paixões. Essa utopia romantizada, exaltada principalmente por campanhas machistas na sociedade patriarcal, nos silenciam. A maioria das mulheres tem vergonha de dizer que goza, que se masturba, por exemplo. A maioria das mulheres ainda se reprime e não conhece o próprio corpo. A dificuldade é a vergonha de como nos julgarão por sermos normais: soa absurdo porque é.

Você é mãe. Isso fez tua percepção sobre a sexualidade mudar? Em que sentido?
A percepção aflorou mais quando me separei do pai do meu filho. Voltei para o Brasil e percebi que esperavam de mim uma mulher que não sou: recatada. Ouvia muito a frase: “Você é mãe, precisa se comportar”. E na época eu era só uma mulher com vinte e poucos anos que também queria tempo pra sair, conversar, conhecer pessoas, tomar cerveja num boteco no centro da cidade e acima de tudo, ser uma boa profissional nas minhas áreas de atuação e também ser uma mãe feliz para meu filho. Então, uma mulher que todos querem castrada, é claramente uma mulher sem liberdade sexual. Meu caminho foi o inverso ao que esperavam, eu me libertei cada vez mais e a arte me trouxe quase um processo terapêutico de aceitação em relação às expectativas dos outros e à minha própria sobre o que julgo ser justo e honesto: e isso fez minha percepção sobre a sexualidade ser cada vez mais livre e feliz.

Obra: “Você é mãe, precisa se comportar”. Foto: Leo Andreiko


O que você diria para as mães que se envergonham de seu prazer sexual?
Eu diria que não há vergonha em sentir prazer e não há vergonha em ser quem se é. A libertação de qualquer amarra patriarcal será a sua felicidade, por consequência, a felicidade dos seus filhos.

Quem quiser comprar canecas e outros objetos da série pode visitar o site da artista ou entrar em contato pelo Instagram.

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