Conter os brutos e a brutalidade

Marcelo Arruda era um trabalhador da segurança que optou pela democracia; seu assassino optou pela violência

O assassinato de Marcelo Arruda escancarou ainda mais a situação política do país, por ser  um assassinato político, num dos momentos históricos dos mais complexos que já atravessamos desde a “redemocratização”.

Em momentos de dor e luto é preciso ter serenidade para avaliar com sabedoria a verdade dos fatos. Muitos, envoltos pela emoção se apressaram em atribuir a Marcelo a condição de herói; todavia é necessário que as coisas sejam ditas como elas são e, por mais que pareça insensível, cabe a nós assumir essa tarefa, sem meandros e melindres – justamente para que outros não sejam alçados à categoria de heróis e nem outras vidas sejam destruídas.

Por mais que as ações de Marcelo e Pâmela, sua esposa, tenham sido incrivelmente corajosas e destemidas, pois “botaram a cara” para sua defesa e dos seus, diante da agressão covarde, mesmo diante destas ações, que são para poucos, nenhum dos dois foi herói, ambos são trabalhadores. Aqui cabe ressaltar que quaisquer questionamentos sobre técnica policial devem ficar em suspenso, o que importa é a opção pelo diálogo.

Ela, também policial, é uma trabalhadora da segurança pública, que surpreendida numa situação imprevista e improvável, fez uma opção clara como mostram as imagens. Sintomática e simbólica, a opção de Pâmela nos diz muito. Ao perceber que o agressor retornara à festa, Pâmela correu para o carro e pegou seu documento funcional, o famoso distintivo policial, e colocou-se à frente do homem armado, enfurecido e descontrolado, apenas com suas palavras e com seu documento na mão.

Não era a famosa “carteirada”, uma forma de extrair alguma vantagem ou privilégio devido sua posição de autoridade, não era um conluio entre policial, juiz, promotores e parte significativa da imprensa, com “supremo com tudo”, para perseguir um adversário político e tirá-lo da disputa eleitoral e criminalizar um partido político inteiro, justamente o partido do trabalhador covardemente assassinado em sua festa de aniversário, diante de amigos e familiares.

Não era uma forma de tirar vantagem de sua condição de policial, foi uma opção pela lei, pela ordem, pelo diálogo, pela democracia liberal, que sejamos francos, pouco contribuiu de fato com os trabalhadores e trabalhadoras mais pobres e miseráveis deste país, desde que desembarcou em terras tropicais! Poderia e deveria ter feito mais, muito mais. Tudo que conquistamos foi com trabalho e luta, luta política. Como dizia meu avô, “trabalho é suor, suor é sangue e sangue é vida!”.

Marcelo era um trabalhador da segurança pública, o que nos coloca uma série de questões. Mas ele, enquanto trabalhador da segurança pública, resolveu lutar, organizou-se em um sindicato, em um partido político e em um movimento, o MPAF – Movimento Policiais Antifascismo – que defende em seu manifesto inaugural lutar “pelo reconhecimento dos policiais como trabalhadores”. Ele escolheu a via do debate público, do embate político, da ação coletiva organizada, democrática e pacífica, escolheu “lutar dentro da ordem, contra a ordem”, como o MPAF defende e como nos ensinou Florestan Fernandes. Justamente a ordem que nos impõe, miséria, pobreza, destruição maciça da natureza, exploração do ser humano pelo ser humano e empurra trabalhadores contra trabalhadores. Como qualquer outra, essa escolha é carregada de dificuldades e desafios, mas ele escolheu esta, em lugar da violência aberta e desmedida.

Ao contrário, seu assassino escolheu a brutalidade e a violência, a “ação individual” e por mais que seja difícil dizer, ele não é um monstro, ele também é um trabalhador da segurança pública, o que nos traz um outro conjunto de questões. Neste caso um trabalhador fanatizado e “fascistizado” como muitos infelizmente, tipo – “passa fome, metido a Charles Bronson”1 – eles, os brutos, não são a maioria!

O número de votos e de pesquisas de opinião não revelam esse quantitativo, mas podemos afirmar que não são a maioria. É um grupo pequeno que pretende extrapolar todos os limites da brutalidade e da violência do cotidiano das sociedades capitalistas, geralmente usado como bucha de canhão pelo fascismo e seus líderes, logo são descartados como a história nos mostra. E aqui há algo que não está aparente em tudo isso, ou pelo menos para uma parcela significativa das pessoas ainda não está.

É que o assassino de Marcelo não puxou o gatilho sozinho, muitos dispararam com ele naquele momento e independente do destino do assassino, aqueles que apertaram o gatilho seguem justificando e até incentivando a brutalidade, para que novos brutos surjam.

Contê-los não é tarefa fácil e individualmente torna-se ainda mais difícil, sobretudo diante das circunstâncias, botar a cara de forma corajosa é questão de sobrevivência e de legítima defesa, mas o combate à brutalidade é mais amplo e atravessa toda a coletividade.

É somente com esforço coletivo organizado e permanente, cobrando a responsabilidade daqueles que tem o distintivo na mão e o poder político concedido democraticamente, somente com um debate sério a cada instante, a cada almoço de família, no local de trabalho ou na vizinhança que vamos alcançar aqueles que ainda estão iludidos ou cegos, imersos nas promessas e discursos abstratos do fascismo. Só assim poderemos barrar a brutalidade e conter os brutos. É preciso também responsabilizá-los, aqueles que apertaram o gatilho e deram a senha ao bruto precisam ser contidos.

Talvez o erro histórico seja não ter dado a devida atenção a isso no período anterior. Marcelo nasceu durante a ditadura, viu ela desmoronar, mas não viu sua derrota de fato; ela deixou vestígios no Estado e marcas nas instituições capazes de gerar novos brutos. Isso passa por eleições, mas é pouco, o sistema eleitoral não é capaz de produzir soluções concretas e definitivas para o fenômeno do fascismo. Aqui outro elemento que não está aparente deve ser revelado, a importância das eleições é inegável, um programa antifascismo é essencial, mas não derrotaremos o fascismo pelo voto!

O combate ao bolsonarismo deve ser prudente e permanente, devemos ser vigilantes para que, aqueles que sentem a tentação de estimular os brutos e usar a brutalidade como ferramenta política, sejam de pronto barrados. Apenas um grande movimento popular pode fazer recuar o fascismo. Para isso é preciso alcançar outras esferas da vida pública, imprensa, judiciário e (principalmente o modelo de segurança pública), devem ser questionados sobre como “nascem os monstros”. É preciso pressioná-los a assumir verdadeiramente a opção pela democracia, pelo debate público, assim como fizeram Pâmela e Marcelo Arruda.

Nossa tarefa histórica, inclusive para honrar a vida e a trajetória de luta de Marcelo e tantos outros como Marielle, Dom e Bruno, é não temer e de braços dados dar um passo a mais contra o fascismo, de forma incansável em todos os lugares em todos os momentos. O menor sinal de manifestação fascista deve gerar alerta e ser prontamente denunciado e combatido. Nossa tarefa e responsabilidade histórica é o combate permanente a esses que querem nos impor o medo, a violência e exterminar os nossos. Como disse Ulysses Guimaraes “…temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina”

Não passarão! Firmes na luta camaradas!

Sobre o/a autor/a

2 comentários em “Conter os brutos e a brutalidade”

  1. Maria Helena Cota Vasconcelos

    Para convivermos em sociedade, abrimos mão de direitos individuais, em favor do coletivo. Instituições são criadas, para intermediar as relações entre as pessoas. O Estado tem o monopólio da força, o poder de polícia. As polícias são garantidoras de direito e assim devem agir. Pâmela sabe! Buscou seu distintivo e com ele tentou parar a agressão. Ali, no primeiro momento, fez a opção pelo respeito, pela vida. De minha parte, todo meu respeito a ela! Fora, fascistas!

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