Biscaia Filho viveu 25 anos com um serial killer e agora conta tudo

O artista mostra a história do assassino Febrônio Índio do Brasil na graphic novel e motion comic "Agora talvez você seja compreendido", com desenhos de José Aguiar e ajuda de outros comparsas

A graphic novel e o motion comic “Agora talvez você seja compreendido” serão lançados neste sábado (28), em Curitiba. As obras falam do assassino em série Febrônio Índio do Brasil, que é o protagonista de um dos casos mais controversos da história criminal brasileira. Paulo Biscaia Filho está à frente das investigações, ou melhor, das duas produções, são dele a ideia do projeto, a direção e os roteiros. Nos desenhos, decupagem e direção de arte estão as digitais de José Aguiar. Ah, é claro, muitos outros comparsas da dupla estão envolvidos nas páginas e cenas que poderão ser encaradas pelos fãs do gênero true crimes e pelos curiosos em breve.

Ao saber disso, não deu para deixar escapar. Para descobrir o que está por trás da ideia de usar a arte para contar a história de uma figura que ganhou as páginas dos jornais por sua monstruosidade impiedosa e terminou como o primeiro réu inimputável do Brasil, o Plural interrogou pessoalmente Paulo Biscaia Filho. Confira o que o artista e professor contou na entrevista a seguir.

No universo cinematógrafo e teatral do “Sangüinario Bucaneiro Intergalático” (é assim que Biscaia Filho se autointitula), quando surgem os quadrinhos?

A paixão pelos quadrinhos vem antes, porque é uma coisa que vem de criança. Aos 10 anos de idade, o meu primeiro grande trauma de perda e luto foi a morte da Gwen Stacy pelas mãos do Duende Verde. Como assim? Uma personagem morre? Não pode! Foi um grande impacto dramático na minha vida.

Daí, obviamente, tinha o cinema, mas era uma coisa passiva, da televisão ligada, um programa com a família. Ainda não era algo individual, uma criança não vai sozinha ao cinema, mas eu lia os quadrinhos sozinho. Eu me lembro das minhas pilhas e pilhas de HQs, que depois minha mãe levou para a Gibiteca. Algumas edições especiais eu salvei. Imagine: eu tenho uma com o encontro do Homem-Aranha e o Super-Homem, é um crossover de marcas. Essa não deixei minha mãe levar.

Você continuou colecionando?

Eu parei durante um período. Depois, na renascença dos quadrinhos no final da década de 80 – com “Watchmen”, “[Batman] O Cavaleiro das Trevas”, “V de Vingança”, e outros – eu voltei porque, naquele momento, os quadrinhos ficaram adultos junto comigo. Não eram mais para a piazadinha, passaram a ser produzidos para a piazada adulta e resgatei meu amor por eles. Isso foi quando eu estava no início da faculdade, por volta dos meus 20 anos de idade. 

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Como a linguagem dos HQs foi parar nas suas produções? 

Eu estava na faculdade de teatro e para um trabalho de expressão corporal, que com certeza é a última coisa em que você me imagina, copiei as partituras corporais do Wolverine, nos quadrinhos do Frank Miller. Eu, que não tinha o menor talento ou vocação para aquela disciplina, fui muito elogiado. [Risos.] Ali, tive um clique de como poderia trabalhar a corporalidade dos quadrinhos na encenação, levei isso para os atores no teatro e depois para o cinema. Por tudo isso, digo que os quadrinhos foram o meu abecedário e o cinema foi a minha gramática, nos quadrinhos eu aprendi as letras e no cinema aprendi as frases.

A graphic novel e o motion comic sobre o Febrônio são as primeiras parcerias com o quadrinista José Aguiar?

Não, o José é a mão que eu não tenho pra desenhar, e até mais do que isso. Ele não apenas coloca o meu roteiro no traço, ele interpreta o roteiro, vai se apropriando daquilo e aí vira uma coisa amalgamada. O primeiríssimo trabalho juntos foi quando ele fez desenhos para a peça de teatro “Graphic” (2007). Nos quadrinhos, fizemos “Vigor Mortis Comics – Volume 1 e 2”, e a adaptação do livro “Museu dos Horrores”, de R. F. Lucchetti, para uma ‘mini-HQ’, distribuída como programa da peça “A Macabra Biblioteca do Dr. Luchetti”. Ainda idealizamos juntos outros projetos, como o Cena HQ, e eu devo estar esquecendo de mais alguma coisa. 

Como nasceu a inspiração para “Agora talvez você seja compreendido”?

Então, essa história tem mais de 25 anos na verdade. A primeira peça da Vigor Mortis, em 1997, foi “Peep – Através dos olhos de um serial killer”, com histórias de vários assassinos em série e, na pesquisa, apareceu o nome do Febrônio Índio do Brasil. Quando descobri tudo que ele fez, deixei ele fora do texto, precisava de algo exclusivo para a história dele. 

Em 1999, montamos “DCVXVI – Eis o Filho da Luz”, sobre o Febrônio, interpretado pelo Clóvis Inocêncio. Foram somente três apresentações, no Festival de Teatro de Curitiba, era um espetáculo bem problemático. Foi uma peça com tantos erros que me levou a parar com o teatro, fiquei cinco anos sem fazer espetáculos. Foi muito traumático. 

O tempo foi passando, as coisas foram acontecendo, eu voltei a fazer teatro, fiz os filmes, e surgiu o interesse por fazer o doutorado. Acabei me aproximando do Clóvis Gruner, que é da área de estudos de história do crime, e juntei as coisas porque era hora de fazer um reparo na minha vida: estudar o Febrônio e fazer “uma coisa” adequada. Gruner é o meu orientador e escreveu o posfácio do quadrinho; era para ser um prefácio, colocamos no final por causa dos spoilers

E o foco da minha tese é justamente o erro que cometi, é sobre como contar a confusa história do Febrônio. Ele é um assassino cruel – matou criança, violentou, tatuou à força – e, ao mesmo tempo, foi esquecido pelo sistema judiciário. Viveu por mais de 50 anos e morreu num manicômio, porque não sabiam o que fazer com ele, não havia jurisprudência para casos assim. 

E como surgem as duas obras em lançamento?

As obras são justamente um momento empírico da pesquisa, que o doutorado não prevê, contudo eu prevejo para mim mesmo. [Risos.] É para questionar como eu conto essa história. E, como eu não sou tão psicopata quanto o personagem, mas quase, eu conto duas vezes: nos quadrinhos e depois em uma animação motion comic.

São 45 páginas na HQ e 35 minutos de filme. Deu para contar toda a história do assassino?

Não. Eu agarrei o nome “Agora talvez você seja compreendido” por dois motivos, primeiro porque ninguém trabalhou esse ponto em especial do caso, segundo porque tem significados fortes. Essa é a frase escrita na coroa de flores do enterro do Febrônio, comprada pelos enfermeiros do manicômio, e não diz que ele vai ser compreendido, apenas que talvez seja. 

Para contar a história, a gente começa de trás para frente, o começo é na coroa de flores. Tem uma chave de leitura para isso no segundo capítulo, quando dois enfermeiros estão conversando. [Trecho cortado para evitar spoiler.] A proposta não é uma narrativa de compreensão objetiva, justamente para o leitor, ou espectador, montar esse quebra-cabeça; que eu nem sei se é montável. São muitos detalhes para um projeto só, por isso, ainda pretendo fazer um roteiro de longa-metragem, em live-action, sobre o Febrônio.

Você contou com comparsas novos nesse projeto?

Sim. Na arte final entrou André Stalschmidt,  indicado pelo José Aguiar para que a gente pudesse dar conta do fluxo de trabalho no pouquíssimo tempo que tínhamos. O roteiro eu fiz no início do ano, os desenhos e a animação nós começamos em agosto. Entre os vários méritos do José nas obras, está a organização. Foi uma linha de produção: ele fazia o lápis, mandava para o André, e começava a desenhar uma nova página. Quando o André terminava cada arte, mandava para mim, e eu já montava a animação. Deu certo!

E tem uma coisa que era meio obrigatória, o Febrônio tinha que ter uma voz preta. Aí entra o Diorlei Aparecido do Espírito Santo, da Trupe Periferia, um performer que tem uma história de vida de superação, de correção do passado. Eu fiz questão de ter o Diorlei, um ator não muito experiente, mas que mostrava o quanto queria fazer. Até aconteceu uma coisa bem legal, ele veio da música e, numa das leituras, disse assim: “Grava o texto e manda para mim, porque esse é o jeito que eu aprendo a intenção e tudo mais.” Aí eu gravei e mandei, como se fosse um podcast, para ele ouvir e aprender pela lógica dele, a do rap.

Entre os antigos cúmplices, quem entrou nessa?

A Caroline Roehrig é a captação de recursos e a produtora geral do projeto; e outro parceiro de longa data, o Demian Garcia, que fez a trilha sonora e a captação de áudio. A Carol também está no elenco junto com as vozes de Kenni Rogers, e a minha mesma.

Já traçou os planos para seus novos crimes com a Vigor Mortis? 

Na agenda, estão três projetos aprovados em editais de incentivo à cultura para o ano que vem. Tem a edição 2024 do festival de cinema Djanho, quando o mascote do evento vai sofrer uma mutação para se transformar no mínimo que a gente espera de uma “Capivara do Djanho”; a segunda parte da série “A macabra biblioteca do Dr. Luquetti – O retorno”, com mais cinco episódios; e uma montagem de artes cênicas, chamada “A maldição dos 27 anos”, que é um guia de sobrevivência da Vigor Mortis. Eu até disse que não iria mais fazer teatro, mas esse projeto é diferente; é um espetáculo parecido com uma casa de terror, daquelas de parque de diversões, e ainda uma exposição.

Ah, eu também preciso conferir se existe um verbete para mim na Wikipedia, porque, no futuro, tem que estar lá: Paulo Biscaia Filho – sanguinário bucaneiro intergalático. [Risos]

Serviço

Lançamento da graphic novel e o motion comic “Agora talvez você seja compreendido”, de Paulo Biscaia Filho, José Aguiar e André Stahlschmidt, com palestra sobre sobre o assassino Febrônio Índio do Brasil na mostra de cinema Djanho! Neste sábado (28), às 15h, na Sala Valêncio Xavier do Cine Passeio (R. Riachuelo, 410). Entrada gratuita. Os 50 primeiros na plateia serão presenteados com um exemplar da graphic novel, publicada pela editora Quadrinhofilia. Outras informações aqui.

O projeto foi incentivado pela Uninter, por meio da Lei de Incentivo à Cultura de Curitiba – Mecenato Subsidiado. A equipe ainda conta com: Leandro Oliveira, como assistente de produção; Nyck Maftum, nos FX digitais; Aline Scheffer, na diagramação e balonamento; Fernanda Baukat como revisora; Malu Moreira como assistente; e Rafaelle Cristina, na pré-produção.

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