Ana Lívia ou a vida sob suspeita

Ao espectador que emergiu do Teatro da Reitoria naquela última semana de março, resta a esperança de que Ana Lívia seja um ponto de partida

A força com que uma narrativa atinge seu espectador depende diretamente da relação que tal espectador mantém com a sua própria realidade; já não se pode falar, creio, em “universalidade”, já não se pode esperar qualquer reação uníssona, unívoca daquele que se vê interpelado por um romance, por um filme, por uma peça. A ensaísta estadunidense Susan Sontag, que tanto escreveu sobre teatro, nos sugere já nos anos 1960 que “a realidade não é tão unívoca; [que] a vida não é tão semelhante à vida”.

Visito os ensaios de Sontag depois de assistir a Ana Lívia, peça escrita por Caetano W. Galindo (“Sim, eu digo sim”; “Latim em pó”), dirigida por Daniela Thomas (“Terra estrangeira”; “Linha de passe”) e estrelada por Bete Coelho e Georgette Fadel, encenada em Curitiba entre os dias 26 e 27 de março como parte da 32ª edição do Festival de Teatro. No mesmo ensaio, Sontag admite: “Não confio mais em romances que saciam toda a minha ardente vontade de entender”. É o meu ponto de partida, ainda impregnado de Ana Lívia. — Já não confio naquilo que se diz por inteiro; a vontade de entender se agita o tempo todo.

Eu poderia, de saída, embarcar no desafio (irrealizável e portanto fácil, pois o fracasso é certo) de descrever Ana Lívia —duas mulheres, sentadas cada uma em um extremo da longa mesa que atravessa o palco, conversam/discutem/relembram/misturam-se; uma delas escreve em seu caderninho e o lê, em um movimento sempre duplo de escrita-leitura; a presença da iluminação é irretocável; o texto se estrutura de modo circular mas, ao se repetir, transforma-se (falhar de novo, falhar melhor, diria Samuel Beckett; aqui, contudo, não há a sisudez de um Beckett: as risadas são abundantes); o véu de água que devolve o oxigênio ao espectador e paradoxalmente interrompe o fluxo, a correnteza do diálogo— mas prefiro, antes, listar aquilo que Ana Lívia não é: um exercício passivo de audiência, um gesto módico de entretenimento, uma peça sobre “nada”.

Não há qualquer passividade do espectador; a peça convida —não literalmente, por óbvio— o público ao engajamento na busca pelo sentido (“sentido” é aqui direção e significado): uma peça que se mostra o tempo inteiro peça; o teatro que grita sou teatro! Uma peça, contudo, que estilhaça a compreensão mais óbvia de “enredo”: o tempo da peça não é o tempo da vida; se na vida há uma urgência do avanço que todos conhecemos, da pressa corriqueira ao envelhecimento incontestável, da história que deve “progredir”, do presente que se alonga, na peça o presente se desfaz, a exigência do avanço se infiltra até nos nomes e os despedaça: primeiro Ana, então Lívia. Ana (e) Lívia são duas assim como todos somos dois ao lembrar da infância, ao imaginar a velhice; somos nós mas somos outros. Ou ainda: Ana (e) Lívia são duas assim como o texto e a sua significação —a materialidade e a sua leitura— são capazes de desagregar-se. Há Ana sem Lívia?

Ao longo de Ana Lívia, somos recorrentemente apresentados a uma historiazinha, que as personagens contam e voltam a contar, mas transformando os detalhes: um passeio com o cachorro em volta do lago; a morte do cachorro, afogado, no lago. A cada retorno à pequena história, Ana e Lívia trocam de posições —personagens da história, ocupantes do lugar da enunciação. Quem conta? Sobre quem? A suspeita cresce: o que é aquilo a que assistimos? Ou: como subverter a urgência, como caminhar em sentido contrário? (Um dos pontos altos da peça, inclusive, é a imitação mútua das personagens, que incorporam uma à outra; atuações brilhantes de Bete Coelho e Georgette Fadel que fazem do texto tudo aquilo que ele pode ser. Não por acaso, a peça é resultado dos diálogos entre Galindo e Coelho.)

A tal vontade de entender se canibaliza. A começar pelo título: Ana Lívia não é Ana e Lívia; é, antes, Ana-caminha-em-direção-a-Lívia. Não quero, porém, esmiuçar os sentidos, sistematizar as significações (seria possível listar as menções de Ana aos neurônios e às sinapses e à mielina e aos dendritos e assim sugerir que a peça trata essencialmente da perda da memória, de uma Ana Lívia que deixa de ser Ana para ser Lívia, de uma Ana Lívia que já não se vê no passado para se ver naquilo que vem); prefiro, antes, a insegurança: não há espaço para qualquer certeza narrativa, para o objeto objetivo, para o certo certeiro. Como lembrar? Por que lembrar? Ana Lívia é também um aceno para a memória sobre a dificuldade da memória — sem jamais dizer “memória”.

Há um conjunto de diálogos que atravessam Ana Lívia: Ana conversa com Lívia, óbvio; mas Ana e Lívia mergulham em monólogos que vão do humor mais sincero a citações de versos ou fragmentos de prosa. O tradutor Caetano W. Galindo traduz aqui de outro modo; o professor Caetano W. Galindo esmiúça a palavra, aqui, de outro modo. A poesia, como na vida, desfamiliariza qualquer diálogo, banal ou não. E Ana Lívia está atravessada pela beleza desta estranheza.

Ao espectador que emergiu do Teatro da Reitoria naquela última semana de março, resta a esperança de que Ana Lívia seja um ponto de partida. Há uma sensação extravagante, fruto das melhores narrativas, que faz germinar o desejo pelo desconforto, pelo maravilhamento; a busca pelo emaranhado de uma língua não totalmente compreensível. E ouvir as vozes de Bete Coelho e de Georgette Fadel, as vozes de Ana e de Lívia —as vozes de Ana Lívia—, do sorriso à suspeita e da suspeita ao sorriso, parece esboçar outra dimensão possível para tudo aquilo que chamamos de linguagem. Há graça e há encanto no desassossego daquilo que se diz, que se escreve, que se lê. Na terra da linguagem —Galindo sabe bem— nada anda em paz. Ainda bem.

Os trechos de Susan Sontag citados estão no ensaio “Nathalie Sarraute e o romance”, em Contra a interpretação (Companhia das Letras, 2020), na tradução de Denise Bottmann.

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