Num país polarizado, ir ao restaurante virou um ato partidário

Chefs e empresários põem suas convicções ideológicas à mesa

De um tempo para cá, acompanhar chefs e empresários da gastronomia nas redes sociais tem se revelado útil não só para conhecer o menu de seus bares e restaurantes, mas também como eles pensam politicamente.

A célebre máxima “somos o que comemos” nunca fez tanto sentido. Slogans como “Fora Bolsonaro”, de um lado, ou “Bolsonaro Mito”, do outro – que antes pareciam reservados às conversas de botequim – têm invadido de forma constante e crescente o setor.

Os exemplos são muitos e vão da direita à esquerda: desde Junior Durski, dono da rede Madero, conhecido apoiador de Jair Bolsonaro, a Beto Madalosso, do restaurante Carlo e pizzaria Madá, que não poupa críticas quase que diárias ao governo federal, só para citar dois entre os mais famosos.

Para Naomi Mayer, cozinheira, cientista social e autora do site Fome de Entender, esse tipo de comportamento é um sintoma da atual polarização política exacerbada. “A comida sempre foi política, o que muda é que hoje as coisas são muito mais nítidas”, afirma.

Segundo ela, a atuação do governo Bolsonaro estabeleceu a necessidade para empreendimentos gastronômicos e pessoas públicas de se manifestarem explicitamente.

“Se posicionar contra o atual governo é, por exemplo, ser a favor da preservação da biodiversidade alimentar defendida por indígenas, campesinas e quilombolas, de uma reforma agrária que priorize a produção de comida e não de commodities, e de uma comida livre de agrotóxicos”, defende Naomi.

Ir a um restaurante ou bar cujo dono compartilha nossos valores e ideologia não é muito diferente de outros comportamentos, como ser vegetariano, vegano, comprar alimentos orgânicos ou de pequenos produtores, segundo Vander Valduga, professor de Turismo da Universidade Federal do Paraná e especialista em hospitalidade.

“O ato de comer não atende apenas a uma função fisiológica, mas à nossa construção identitária. Quando a gente come e faz escolhas alimentares estamos em busca daquilo que nós acreditamos que somos, nos autoafirmamos. O que temos de diferente hoje é o aspecto partidário”, diz.

Naomi destaca também que o fato de um chef expor seu próprio pensamento político ou dar uma cara ideológica ao seu empreendimento gastronômico pode ser uma jogada de marketing ou uma forma de encontrar um nicho de mercado.

Desde que Giovanna Lima, proprietária do Bek’s Bar, em Curitiba, postou nas redes sociais a frase que a fez viralizar no Brasil inteiro – “Eu prefiro falir com dignidade do que ir contra os meus princípios” –, o tradicional boteco do Água Verde refloresceu depois de um período de dificuldade econômica causada não só pela pandemia, mas pela falta de clientela que sentia saudade dos tempos em que o local era comandado pelo pai Jefferson. 

“Estamos num momento em que a questão política não tem como ficar de fora dos debates e eles acontecem também na mesa de bar. As pessoas têm se preocupado com o lugar onde elas direcionam seu dinheiro, que parece valer cada vez menos. Já não faz mais sentido deixar parte do nosso salário com gestores que pensam parecido com o atual presidente”, defende.

Segundo a empresária, os antigos clientes maltratavam a ela e aos funcionários, comportamento que cessou desde que Giovanna atraiu um público alinhado aos seus princípios. “Os clientes se sentem mais confortáveis em estar em espaços onde seus valores são representados”, garante.

Mesa: lugar de comunhão ou perdão?

Giovanna não acredita que a polarização política mine as fundações da comensalidade – o conceito de comer juntos, inclusive com pessoas que pensam de maneira diferente. “Prefiro seguir aquele ditado que diz que se tem dez pessoas numa mesa e um nazista chega e ninguém se levanta, então existem onze nazista. Quero compartilhar com pessoas que busquem a melhor versão de si mesmas, não a pior”, diz.

A ideia é compartilhada pela jornalista gastronômica Flávia Schiochet, criadora da Fogo Baixo, newsletter de reflexões lentas sobre alimentação, culinária e gastronomia. Ela considera a mesa o lugar da comunhão, mas não do perdão.

“O perdão vem antes. Você comunga com quem você quer e partilha alguma coisa. Você sabe com quem vai se sentar à mesa e as regras daquele grupo, sociedade ou família já são postas”, afirma Flávia.

Segundo ela, há diferenças toleráveis – como a escolha do restaurante ou do cardápio -, mas se as desavenças políticas invadiram a alimentação é um sinal de que as coisas não vão tão bem. “A mesa não é apaziguadora, é um palco também”, resume.

O atual cenário não se materializou repentinamente em 2018 com a eleição de Bolsonaro à presidência, mas floresceu após uma semeadura de vários anos que Flávia faz remontar ao segundo governo de Dilma Rousseff.

Ironicamente, numa das mais famosas referências gastronômicas na política, apoiadores e contrários da presidente eram apelidados de “mortadela” e “coxinha”.

Na época, o premiado chef Alex Atala, do D.O.M., sinalizou apoio ao impeachment e, quando a Lava Jato decretou a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para depor na Polícia Federal, restaurantes curitibanos como Taisho e Karbonell ofereceram promoções na porção de lula frita.

A partir daí, a gastronomia se politizou cada vez mais. As chefs Rita Lobo e Paola Carosella também costumam fazer posts de cunho político e partidário e, recentemente, quando Bolsonaro organizou uma motociata no Rio de Janeiro, a premiada chef Roberta Sudbrack suspendeu as entregas de seu restaurante para protestar contra o ato.

Valduga volta ainda mais no tempo e lembra que as cafeterias renascentistas italianas já eram divididas politicamente. No Brasil, durante a Segunda Guerra Mundial, os imigrantes italianos, japoneses e alemães sofriam perseguição e deixaram de frequentar os espaços públicos. Cenário parecido se repetiu durante a ditadura militar com a repressão à esquerda. Com a redemocratização, as diferenças políticas e partidárias aos poucos se diluíram.

Para o dono do restaurante Petrisserie e colunista do Plural, Felipe Petri, a política é uma forma de transgressão e criatividade que entrou na gastronomia a partir do século 18, quando, em Paris, surgiram os primeiros restaurantes desvinculados do conceito de hospedagem. Foi um ponto de virada que transformou o restaurante de um lugar onde satisfazer apenas uma necessidade vital para um espaço de fruição vital e criativa.

“De um lado, a criatividade de quem cria, e do outro a fruição da vida naquele que consome. Em ambos os casos, essa transgressão faz tangenciar novos planos de experiência para além do simples fato de alimentar-se. Por conta disso, quem tem a veia política saltada, não escapa de colocá-la para fora hoje em dia. O ambiente é mais do que propício. Seja de um lado ou do outro”, avalia.

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